Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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aplicação, então <strong>um</strong> espermatozói<strong>de</strong> <strong>é</strong> vida potencial. Logo, não <strong>de</strong>ve o s<strong>é</strong>men ser <strong>de</strong>rramado<br />
sem ser para uso procreativo. Nem o preservativo <strong>de</strong>ve ser usado. Nunca. Por isso, em rigor, a<br />
Igreja Católica <strong>é</strong> coerente consigo própria. Ass<strong>um</strong>am, então, os pró-vida, que os seus<br />
arg<strong>um</strong>entos são <strong>de</strong> natureza doutrinária. São religiosos. São <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> f<strong>é</strong>. E n<strong>um</strong> Estado<br />
laico estas são questões do foro íntimo, que não po<strong>de</strong>m ser impostas a ningu<strong>é</strong>m. Mas não: eles<br />
lançam-nos a armadilha ao tentarem justapor as suas crenças específicas aos sentimentos gerais<br />
da socieda<strong>de</strong>, da “civilização”. Por isso lhes <strong>é</strong> tão fácil falar em “direitos h<strong>um</strong>anos”. E nós<br />
ficamos quietinhos a ouvir e implicitamente a concordar.<br />
O mesmo se po<strong>de</strong>ria dizer sobre a prevenção. Todos queremos educação sexual; acesso a<br />
consultas <strong>de</strong> planeamento familiar; acesso gratuito à contracepção; e apoio social para os casos<br />
em que esta falha ou para quem não queira abortar. Os pró-vida gabam-se agora <strong>de</strong> terem feito<br />
“muito” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o referendo. Mas o que fizeram centra-se no apoio <strong>de</strong> berço e nas ajudas<br />
caritativas a mães e crianças in<strong>de</strong>sejadas. Sobre educação sexual e contracepção, zero. Pela<br />
simples razão <strong>de</strong> que isso significaria romper com a doutrina Católica relativa à sexualida<strong>de</strong>.<br />
Tamb<strong>é</strong>m as reinterpretações do referendo se tornam <strong>de</strong>lirantes. Os pró-vida vão paulatinamente<br />
tentando transmitir a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o povo português se pronunciou contra o aborto. “Alto e pára<br />
o baile”, apetece dizer: nunca <strong>é</strong> <strong>de</strong>mais lembrar que votaram 30% dos eleitores e que o resultado<br />
foi praticamente “fifty-fifty”; nunca <strong>é</strong> <strong>de</strong>mais lembrar que, nessas condições, a lei não consi<strong>de</strong>ra<br />
o referendo vinculativo; nunca <strong>é</strong> <strong>de</strong>mais lembrar que nem sequer era necessário ter havido<br />
referendo pois, que se saiba, o parlamento ainda <strong>é</strong> o legítimo representante da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
posicionamentos na socieda<strong>de</strong> portuguesa.<br />
Ao contrário do que alg<strong>um</strong>a “esquerda” pensa – nomeadamente o PS que, sobre o aborto,<br />
prefere enfiar a cabeça na areia – não sobra muito espaço para contemporização, conciliação, ou<br />
busca <strong>de</strong> consensos. Está na hora <strong>de</strong> dizer que, junto com a Irlanda, Portugal está na barbárie.<br />
Vive o s<strong>é</strong>culo XXI nos telemóveis e no Euro, o XIX nos direitos sexuais e reprodutivos. Temos<br />
união <strong>de</strong> facto sem discriminação da orientação sexual (e ainda bem) mas não temos aborto livre<br />
e gratuito. Seja atrav<strong>é</strong>s da pressão da opinião pública ou dos movimentos sociais, <strong>de</strong> iniciativas<br />
legislativas ou, mesmo, atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong> novo referendo, a esquerda e os livre-pensadores em<br />
geral não <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>sistir nunca <strong>de</strong> ganhar esta batalha. Uma batalha <strong>de</strong> direitos h<strong>um</strong>anos.<br />
Porque uso esta expressão já tão abortada pelos pró-vida? Porque, paradoxalmente, quero fugir<br />
do campo discursivo <strong>de</strong>les e atacá-los <strong>de</strong> frente. O aborto <strong>é</strong> mesmo <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> direitos<br />
h<strong>um</strong>anos, mas dos direitos h<strong>um</strong>anos das mulheres. Há que dizê-lo: <strong>um</strong>a criança, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
nascer, <strong>é</strong> <strong>um</strong>a Pessoa, com nome, envolvida em relações sociais e <strong>de</strong> comunicação (poupem-nos<br />
os <strong>de</strong>lírios sobre os fetos que ouvem; tamb<strong>é</strong>m o meu gato ouve). Um feto com menos <strong>de</strong> 12<br />
semanas não reúne estas características. No início <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada têm mais peso<br />
para a mulher a surpresa, o medo, e a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir sobre a gestação. Quanto mais perto<br />
do parto, menos assim <strong>é</strong>. Por isso mesmo existe <strong>um</strong> limite temporal nas propostas <strong>de</strong> legalização<br />
do aborto. Assim como a maiorida<strong>de</strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong>finida n<strong>um</strong>a ida<strong>de</strong> específica, por muito que <strong>um</strong> jovem<br />
<strong>de</strong> 14 possa ser mais maduro do que <strong>um</strong> outro <strong>de</strong> 19. Nalg<strong>um</strong> ponto tem que ser traçada a<br />
fronteira, pois essa <strong>é</strong> a salvaguarda da responsabilização e do abuso. Dizer que <strong>um</strong> feto <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
ou dois meses <strong>é</strong> o mesmo que <strong>um</strong> <strong>de</strong> sete meses, pronto a sobreviver nem que seja na<br />
incubadora, <strong>é</strong> próprio <strong>de</strong> quem vive n<strong>um</strong> universo Disney.<br />
Isto <strong>é</strong> tão claro que nem sequer me preocupo muito com os arg<strong>um</strong>entos a favor do aborto que<br />
centram a sua pr<strong>é</strong>dica nos dramas sociais e económicos. Vou mais longe (ou fico mais perto):<br />
trata-se mesmo do direito <strong>de</strong> optar, mesmo por parte <strong>de</strong> quem tenha dinheiro, estatuto e tempo<br />
para cuidar <strong>de</strong> quatrocentas crianças. Trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar ou não <strong>de</strong>sejar, sentir-se ou não capaz<br />
<strong>de</strong> entrar no compromisso <strong>de</strong> educar <strong>um</strong> ser h<strong>um</strong>ano e cidadão.<br />
Fazendo <strong>um</strong> esforço por me acalmar (o leitor não sabe que entre o último parágrafo e este<br />
<strong>de</strong>correu o tempo <strong>de</strong> <strong>um</strong> whisky e <strong>um</strong> cigarro) <strong>é</strong> incontornável remeter a questão para a<br />
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