13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

a percepção instintiva disto que me fez sempre <strong>de</strong>testar o Carnaval. Contida nuns poucos <strong>de</strong><br />

dias, domesticada por procedimentos rígidos (como transgredir, on<strong>de</strong>, quado, em relação a quem<br />

etc), a festa parece celebrar – perversa e paradoxalmente – a não-festa que se lhe segue.<br />

Se quisesse isolar <strong>um</strong> símbolo <strong>de</strong> tudo isto, escolheria o travesti do <strong>de</strong>sfile carnavalesco n<strong>um</strong>a<br />

qualquer vila portuguesa <strong>de</strong> hoje. Não há figura mais insuportável do que o heterossexual-por<strong>de</strong>feito<br />

travestido, simultaneamente dando vazão a <strong>um</strong> qualquer <strong>de</strong>sejo secreto <strong>de</strong> não ser<br />

machão e exercendo <strong>um</strong>a “crítica” e <strong>um</strong>a caricatura que <strong>é</strong> simultaneamente sexista (na imitação<br />

achincalhante <strong>de</strong> <strong>um</strong>a feminilida<strong>de</strong> estereotípica) e homofóbica. E julga-se transgressor quando,<br />

no fundo, obe<strong>de</strong>ce ao guião que diz que naqueles dias concretos do calendário ele <strong>é</strong> suposto<br />

incorporar aquela ou aquele <strong>de</strong> quem faz chacota nos outros 364 dias do ano.<br />

Para mim, não há festa, nem criativida<strong>de</strong>, nem libertação, nem crítica social, nos Carnavais que<br />

por aí vemos. Nas socieda<strong>de</strong>s camponeses, <strong>é</strong> (era...) oportunida<strong>de</strong> para válvula <strong>de</strong> escape <strong>de</strong><br />

críticas pessoais e sociais cuja expressão era proibida no dia-a-dia não festivo – o que só revela<br />

o horror repressivo <strong>de</strong>ssas socieda<strong>de</strong>s. Nas socieda<strong>de</strong>s urbanas, como no caso brasileiro, serve<br />

para fingir que tudo <strong>é</strong> harmonioso nas relações entre as classes, os g<strong>é</strong>neros, as raças e as<br />

orientações sexuais. É a mega-performance <strong>de</strong> <strong>um</strong> projecto i<strong>de</strong>ológico nacional. E no Portugal<br />

dos caciques autárquicos e futebolísticos, serve para <strong>um</strong>as negociatas turísticas, com convidados<br />

brasileiros, imitando <strong>um</strong>a corporalida<strong>de</strong> e musicalida<strong>de</strong> que por cá não existe e dando r<strong>é</strong><strong>de</strong>a<br />

solta (mas organizada no <strong>de</strong>sfile) à parolice, à arregimentação, ao pequeníssimo-burguesismo <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> que fica ainda mais contente consigo mesma quando pensa que <strong>é</strong> capaz <strong>de</strong> rir <strong>de</strong><br />

si mesma.<br />

Estarei afinal a ser mesmo “gr<strong>um</strong>py old man”, cínico ou elitista? Creio que não, passe a<br />

imod<strong>é</strong>stia. É que gosto mesmo <strong>de</strong> festas, transgressões e críticas sociais. Mas prefiro-as<br />

espontâneas, criativas, não ritualizadas, não contidas no calendário e, portanto, verda<strong>de</strong>iramente<br />

atrevidas, libertárias e potencialmente transformadoras quer da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do transgressor, quer<br />

das percepções dos que o ro<strong>de</strong>iam. Prefiro mil vezes <strong>um</strong>a “drag queen” espontânea n<strong>um</strong>a manif<br />

gay (que não a “drag queen” para animar bares hetero, entenda-se) do que mil machões travestis<br />

n<strong>um</strong> dia <strong>de</strong> Carnaval.<br />

Vamos Mo<strong>de</strong>rnizar Esta Coisa?<br />

(Webpage, 9.03.02)<br />

Algu<strong>é</strong>m me dizia outro dia que as situações mais stressantes são a morte <strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m próximo, os<br />

divórcios e as mudanças <strong>de</strong> casa. Ora, se a morte se “encaixa” como inelutável e natural e se o<br />

divórcio po<strong>de</strong> at<strong>é</strong> ser <strong>um</strong> alívio e <strong>um</strong> recomeço, já a mudança <strong>de</strong> casa <strong>é</strong> <strong>um</strong>a história <strong>de</strong> horror.<br />

Passei por essa experiência nos últimos dias – e daí a <strong>de</strong>mora em escrever <strong>um</strong>a nova crónica.<br />

Esta, por sinal. Não vos vou maçar com os meus pequenos problemas pessoais. Acontece,<br />

simplesmente, que a mudança me expôs ao caos organizacional do nosso país. Da ineficácia <strong>de</strong><br />

muitos serviços at<strong>é</strong> à <strong>de</strong>pendência exclusiva do h<strong>um</strong>or ou nível <strong>de</strong> literacia d<strong>um</strong> funcionário –<br />

passando pelo verniz mo<strong>de</strong>rnaço que alguns serviços levaram, escon<strong>de</strong>ndo a prepotência própria<br />

dos monopólios (ah, a TV Cabo!) – fazer o que quer que seja nesta terra <strong>é</strong> <strong>um</strong>a aventura<br />

hom<strong>é</strong>rica.<br />

Repito: não vos vou maçar com pormenores pessoais. Colectivizemos: a mo<strong>de</strong>rnização <strong>é</strong>, em<br />

Portugal, <strong>um</strong> processo coxo. O país com <strong>um</strong>a das mais elevadas taxas <strong>de</strong> penetração <strong>de</strong><br />

telemóveis (objectos <strong>de</strong> comunicação, a quintessência da alta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>) <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m o país<br />

com a pior situação em termos <strong>de</strong> HIV ou tuberculose (sendo os corpos infectados por vírus e<br />

bact<strong>é</strong>rias contagiantes a quintessência da pr<strong>é</strong>-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>). Na política – estão a ver, eu tinha<br />

que chegar aqui... – algo <strong>de</strong> semelhante acontece. Passámos quase directamente da ditadura<br />

mais antiga, parola e paroquial/paroquiana da Europa para a política mediático-publicitária “a<br />

la” Berlusconi. Pelo meio falhou o essencial: a consolidação dos mecanismos da <strong>de</strong>mocracia<br />

109

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!