13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Portugal, caso o leitor não saiba, o aborto <strong>é</strong> ilegal). Por outro lado, no mundo do interior, das<br />

periferias, das beiras <strong>de</strong> estrada, tudo se esboroa e corrói, dos leitos dos rios às pontes,<br />

grassando o <strong>de</strong>sconforto e a insegurança, apodrecendo as estruturas em territórios abandonados,<br />

on<strong>de</strong> permanecem meia dúzia <strong>de</strong> pessoas a quem resta serem apanhadas n<strong>um</strong>a enxurrada<br />

enquanto assistem na televisão às emissões <strong>de</strong> Castelo <strong>de</strong> Paiva.<br />

O paraíso comunista<br />

(“Portugal Diário”, 2001)<br />

Cuba não está na or<strong>de</strong>m do dia <strong>de</strong>s<strong>de</strong>, pelo menos, o <strong>de</strong>sfecho do caso Elián Gonzales. Mas<br />

quando estrear em Portugal o filme “Before Night Falls” (<strong>de</strong> Julian Schnabel, com Javier<br />

Bar<strong>de</strong>m), baseado na obra homónima do escritor cubano Reinaldo Arenas, <strong>é</strong> bem provável que<br />

surja <strong>um</strong> importante <strong>de</strong>bate. Não tanto – segundo a opinião <strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m que muito respeito –<br />

pelas virtu<strong>de</strong>s do filme, que não vi. Talvez mais pelas virtu<strong>de</strong>s do livro, que acabo <strong>de</strong> ler. “Antes<br />

que anocheza” <strong>é</strong> <strong>um</strong>a autobiografia surpreen<strong>de</strong>ntemente seca, ágil e directa ao assunto. Ou aos<br />

assuntos: a criação literária, a atmosfera política em que o escritor cresce e a força motriz da<br />

sexualida<strong>de</strong>. Os três assuntos interligam-se. A tensão criada entre eles prenunciava, nos idos dos<br />

anos cinquenta e sessenta, aquilo que vai marcar gran<strong>de</strong> parte da política e das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no<br />

s<strong>é</strong>culo XXI: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrosar os projectos pessoais <strong>de</strong> vida com os projectos colectivos<br />

<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, sabendo que os dois terão sempre <strong>um</strong>a relação tensa.<br />

Mas porquê Cuba? Não esqueçamos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, que aquela ilha caribenha <strong>é</strong> o que resta do<br />

colapso do socialismo real nos finais do s<strong>é</strong>culo XX. Não esqueçamos, tão pouco, o papel que ela<br />

jogou no imaginário da esquerda, como “alternativa” aos sistemas burocráticos do Leste<br />

Europeu. Tenhamos em conta, tamb<strong>é</strong>m, o papel que ela joga como “o outro aqui ao lado” e bo<strong>de</strong><br />

expiatório para os Estados Unidos. Por fim, <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> turismo revolucionário, Cuba passou a<br />

<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> turismo <strong>de</strong> massas e exportadora <strong>de</strong> paisagens musicais. Paraíso tropical e socialismo<br />

voluntarista: dois símbolos que ajudaram a esquerda a construir todo <strong>um</strong> mito.<br />

Textos como o <strong>de</strong> Arenas perturbam, sobretudo, a soli<strong>de</strong>z da gran<strong>de</strong> narrativa que a esquerda<br />

europeia e latino-americana tem construído sobre Cuba. Ele põe em causa a gesta dos<br />

guerrilheiros castristas e guevaristas, dizendo que o po<strong>de</strong>r simplesmente lhes caiu nas mãos; põe<br />

em causa o carisma <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l, apontando-o como <strong>um</strong> ditador e manipulador <strong>de</strong> massas; põe em<br />

causa o apoio popular ao regime, <strong>de</strong>smontando os mecanismos <strong>de</strong> vigilância, corrupção,<br />

<strong>de</strong>núncia e repressão; põe em causa a suposta especificida<strong>de</strong> do projecto social e económico,<br />

apontando Cuba como <strong>um</strong>a colónia sovi<strong>é</strong>tica; e chega a pôr em causa a velha i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que em<br />

Cuba se resolveram problemas básicos <strong>de</strong> subsistência e saú<strong>de</strong>, traçando, pelo contrário, <strong>um</strong><br />

quadro <strong>de</strong> mis<strong>é</strong>ria e paranóia.<br />

O mais importante, todavia, será a forma como alg<strong>um</strong>a esquerda se agarra <strong>de</strong>sesperadamente a<br />

Cuba como símbolo <strong>de</strong> qualquer coisa que “não resultou tão mal quanto” as outras experiências<br />

socialistas. E como <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> bastião revolucionário, autónomo e resistente, no meio do<br />

furacão da globalização capitalista (e/ou do imperialismo americano): ao resistente perdoam-selhe<br />

os pecados. Acontece que este discurso <strong>é</strong> intolerável. Sobretudo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler Reinaldo<br />

Arenas e partindo do princípio que a sua análise <strong>é</strong> fiável: fiabilida<strong>de</strong> nem maior nem menor do<br />

que a <strong>de</strong> outras análises mais panegíricas. O problema resi<strong>de</strong> na ausência <strong>de</strong> livre acesso à<br />

realida<strong>de</strong> cubana (os laureados com o Nobel e alg<strong>um</strong>as estrelas <strong>de</strong> cinema não contam, como <strong>é</strong><br />

óbvio, ao prestarem-se a c<strong>um</strong>prir o papel <strong>de</strong> bibelôs do regime). É isso que <strong>de</strong>fine <strong>um</strong>a ditadura.<br />

Aceito que se diga que Arenas <strong>é</strong> <strong>de</strong> “direita”. Que os seus apelos à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão em<br />

Cuba encontraram eco sobretudo em meios conservadores (em França, por exemplo, as suas<br />

cartas só foram publicadas no conservador Le Figaro). Mas porquê <strong>de</strong>sautorizar a arg<strong>um</strong>entação<br />

por causa disso? Não haverá <strong>um</strong>a margem <strong>de</strong> consenso nas expectativas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, venham<br />

elas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vierem? O problema que a leitura <strong>de</strong> Arenas levanta <strong>é</strong>, afinal, perturbadoramente<br />

75

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!