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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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fosse <strong>um</strong>a criança. Nisso, M. saiu ao pai: “apren<strong>de</strong>r, apren<strong>de</strong>r, sempre”, como dizia o Lenine (o<br />

tal que tamb<strong>é</strong>m apren<strong>de</strong>u que, quando nos erguem <strong>um</strong>a estátua, o mais provável <strong>é</strong> que ela venha<br />

a cair).<br />

M. não consegue, todavia, concentrar-se na compra do aparelho. Pensa, sim, em como o<br />

aniversário do pai está contaminado. Como a data coincidia com o aniversário <strong>de</strong> <strong>um</strong>a tia, esta<br />

havia sugerido que se juntassem as duas celebrações. Mas advertiu os pais <strong>de</strong> M: o jantar seria<br />

“íntimo”, <strong>um</strong>a “coisa <strong>de</strong> família”. Descodificada, a frase queria dizer que M. po<strong>de</strong>ria estar<br />

presente, mas não o homem com quem vive.<br />

M. não vai ao aniversário, <strong>é</strong> claro. Assim como não iria mesmo que, arrependida, a tia acabasse<br />

por convidar o casal. Os pais <strong>de</strong> M., magoados com a história, organizam <strong>um</strong> almoço para<br />

comemorar o aniversário do pai. Nisto – gosta M. <strong>de</strong> pensar – tamb<strong>é</strong>m sai a eles: nunca ce<strong>de</strong>r à<br />

estupi<strong>de</strong>z alheia, mas arranjar alternativas positivas. Com este pensamento, M. entusiasma-se <strong>de</strong><br />

novo com a compra do DVD.<br />

Com o aparelho mágico <strong>de</strong>baixo do braço, vai tomar <strong>um</strong>a bica à saída do hipermercado. O<br />

telemóvel toca. É o namorado, como indica o ecrã do aparelho. Acabava <strong>de</strong> saber a notícia dos<br />

dois aviões <strong>de</strong>spenhados contra o World Tra<strong>de</strong> Center em Nova Iorque. M. pensa tratar-se <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a brinca<strong>de</strong>ira. Pergunta-se se não <strong>é</strong> o primeiro <strong>de</strong> Abril. Mas, com os lábios ainda na borda<br />

da chávena, soergue os olhos. À sua frente, <strong>um</strong>a televisão. Em directo, as Twin Towers lançam<br />

f<strong>um</strong>o como duas chamin<strong>é</strong>s da era industrial.<br />

Mas não estamos na era industrial. Estamos na era da tecnologia informática, da socieda<strong>de</strong> em<br />

re<strong>de</strong>. De DVD <strong>de</strong>baixo do braço, telemóvel colado à orelha, e televisão à frente, M. está a<br />

partilhar com milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecidos, <strong>um</strong>a informação sobre <strong>um</strong> acontecimento terrível na<br />

capital do mundo. De certo modo, na sua capital. Com esses milhões <strong>de</strong> outros seres, está a criar<br />

<strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> imaginada, mais ainda do que o foram os Estados-Nações quando toda a gente<br />

começou a apren<strong>de</strong>r a mesma língua, com as mesmas regras ortográficas, em escolas do mesmo<br />

Estado.<br />

De repente, o episódio da tia per<strong>de</strong> importância. A ferida <strong>de</strong> M., do foro íntimo, <strong>é</strong> substituida<br />

por <strong>um</strong>a ferida do foro público. Emociona-se como acontece, por vezes, ao ver <strong>um</strong> bom filme.<br />

Mas sabe distinguir realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficção: o meio – a TV – <strong>é</strong> o mesmo, mas a mensagem <strong>é</strong> outra.<br />

Ele sabe – ele confia – que o que aconteceu <strong>é</strong> a realida<strong>de</strong>. Mesmo pressentindo a trágica ironia:<br />

terroristas <strong>de</strong> <strong>um</strong> qualquer terceiro mundo, cons<strong>um</strong>idores vorazes <strong>de</strong> filmes catástrofe <strong>de</strong><br />

Hollywood, tornaram realida<strong>de</strong>, na Am<strong>é</strong>rica, a ficção nela produzida.<br />

Regressa à pressa para casa. O namorado faz o mesmo. Colam-se à TV. Todos os canais – todo<br />

o mundo – estão fixado em Nova Iorque. As questões começam a surgir. Será o terrorismo<br />

justificável com o terrorismo <strong>de</strong> Estado (em Israel as execuções extra-judiciais são agora<br />

permitidas)? Será <strong>um</strong> ataque aos EUA justificável com o imperialismo americano e a iniquida<strong>de</strong><br />

das suas acções? A resposta <strong>é</strong> <strong>um</strong> duplo não. Tempos terão havido em que se po<strong>de</strong>ria classificar<br />

<strong>um</strong> certo tipo <strong>de</strong> terrorismo como a “guerra dos pobres”. Esse terrorismo aproximava-se mais <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a revolta ou <strong>de</strong> <strong>um</strong>a guerra civil. Mas como <strong>é</strong> isso possível agora, quando os pobres<br />

po<strong>de</strong>riam não o ser se os seus governantes distribuíssem as riquezas? E quando o terrorismo não<br />

<strong>é</strong> necessariamente a resposta <strong>de</strong> todos os h<strong>um</strong>ilhados (fizeram os jugoslavos terrorismo <strong>de</strong>ste<br />

tipo <strong>de</strong>pois dos bombar<strong>de</strong>amentos <strong>de</strong> Belgrado?)<br />

M. pensa, assustado, na sofisticação <strong>de</strong>ste terrorismo: o dinheiro necessário para <strong>um</strong> golpe<br />

<strong>de</strong>stes; o investimento em planeamento; a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recrutar gente com conhecimentos,<br />

cultura, supostamente com racionalida<strong>de</strong> (para fazer explosivos, divisar estrat<strong>é</strong>gias, quem sabe<br />

se pilotar aviões). M. assusta-se tamb<strong>é</strong>m com a vulnerabilida<strong>de</strong> e a proximida<strong>de</strong>: quando as<br />

Twin Towers são atacadas, a globalização atingiu o seu auge – estamos todos perto uns dos<br />

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