Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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oportunida<strong>de</strong>s perdidas para os presos e para a socieda<strong>de</strong>, como se ainda se arrastassem<br />
grilhetas em caves húmidas e povoadas <strong>de</strong> roedores, at<strong>é</strong> ao fim dos tempos. A privação da<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>é</strong> <strong>um</strong>a condição que <strong>de</strong>veria servir para ensinar o usufruto da liberda<strong>de</strong>, a pessoas que<br />
prevaricaram porque não o conseguiram fazer em socieda<strong>de</strong>; ou a pessoas que, tendo<br />
malevolamente privado outros das suas liberda<strong>de</strong>s, passam a ter <strong>um</strong>a “chance” <strong>de</strong> reconsi<strong>de</strong>rar a<br />
sua atitu<strong>de</strong>. Para tal há que haver condições. E para haver condições há que haver vonta<strong>de</strong> e<br />
valores. Se não os há lá “<strong>de</strong>ntro”, <strong>é</strong> porque não os há cá “fora”. A prisão não <strong>é</strong> a socieda<strong>de</strong> às<br />
avessas; <strong>é</strong> o seu espelho.<br />
Em vez disso, a situação vai piorando no doce remanso próprio <strong>de</strong> quem acha que a prisão <strong>de</strong>ve<br />
consistir em carregar <strong>um</strong>a cruz às costas. Não tem isso que ver com aquela i<strong>de</strong>ia antiga <strong>de</strong> que o<br />
mundo <strong>é</strong> <strong>um</strong>a prisão? Talvez. At<strong>é</strong> ao dia em que a coisa estoirar – lá <strong>de</strong>ntro ou cá fora.<br />
Sem justa causa<br />
(Público, 07.04.96)<br />
Quem dá dinheiro às Finanças e à Segurança Social, fá-lo acreditando que está a contribuir para<br />
serviços públicos <strong>de</strong> que será <strong>um</strong> eventual beneficiário. Acredita que está a ajudar a diminuir as<br />
clivagens sociais – a ser solidário. E acredita que <strong>um</strong> dia receberá o que lhe <strong>é</strong> <strong>de</strong>vido, <strong>de</strong> modo a<br />
usufruir <strong>de</strong> <strong>um</strong>a reforma para a qual são adiados os sonhos do presente. Ou eu me engano muito,<br />
ou po<strong>de</strong> chamar-se a isto <strong>um</strong> contrato social. É a nossa Lei, a nossa cultura, e tem o seu quê <strong>de</strong><br />
sagrado.<br />
Agora dizem-nos que tudo isso <strong>é</strong> <strong>um</strong> sonho. Felizmente os portugueses estão preparados para<br />
aguentar o choque. É que nunca consegui confirmar em que são aplicados os meus impostos.<br />
Habito n<strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> nojenta, esburacada, poluída, miserável, mal enjorgada, nova-rica e velhapobre.<br />
De bom já só tem aquilo por que não <strong>é</strong> responsável: o clima (e só às vezes). Por cada<br />
escudo que <strong>de</strong>sconto, aparece mais <strong>um</strong> miserável. Quando recorro aos serviços <strong>de</strong> que eu<br />
próprio sou suposto usufruir, ei-los que se esf<strong>um</strong>am no ar: a conta do quiroprátrico que me trata<br />
das costas não <strong>é</strong> comparticipada pela segurança social “porque <strong>é</strong> medicina natural”; o autocarro<br />
não chega, ou o espaço <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le não chega, ou não se chega; ao mesmo tempo que se escava<br />
<strong>um</strong>a linha <strong>de</strong> metro que vai dar a <strong>um</strong> <strong>de</strong>scampado obscuro on<strong>de</strong> não se sabe se alg<strong>um</strong>a vez<br />
haverá casas.<br />
Sugerem-nos que façamos planos <strong>de</strong> poupança, seguros <strong>de</strong> não sei o quê e investimentos. Mas<br />
quem nos garante que essas coisas funcionam? E são estrat<strong>é</strong>gias em alternativa, ou gastos<br />
acrescidos? Tamb<strong>é</strong>m aqui, a experiência do português <strong>é</strong> riquíssima. Passamos a vida a<br />
emprestar dinheiro aos bancos. Por vezes somos mesmo obrigados a isso, como no caso dos<br />
funcionários do Estado que vêem o seu or<strong>de</strong>nado <strong>de</strong>positado na Caixa Geral <strong>de</strong> Depósitos. Mas<br />
quando se precisa <strong>de</strong> <strong>um</strong> empr<strong>é</strong>stimo, ou <strong>é</strong> recusado ou os juros são altíssimos: pelo menos mais<br />
do que aqueles que os bancos nos <strong>de</strong>viam pagar pelo que lhes emprestamos. Quanto à<br />
seguradoras, acicatam os temores dos riscos do futuro, fazendo-nos pagar por ... coisa nenh<strong>um</strong>a.<br />
Coisas que po<strong>de</strong>m não acontecer. Ou que, acontecendo, são <strong>de</strong>tectivescamente verificadas,<br />
como se aquilo em relação ao que se propuseram proteger-nos fosse, afinal, inimaginável.<br />
Pe<strong>de</strong>m-nos, tamb<strong>é</strong>m, que sejamos flexíveis e <strong>de</strong>ixemos <strong>de</strong> pensar no emprego nos termos<br />
tradicionais. Pois. Só que entretanto o <strong>de</strong>semprego cresce e não surgem novos tipos <strong>de</strong> emprego<br />
ou formas <strong>de</strong> partilhar o trabalho. Se o leitor acha que isto <strong>é</strong> <strong>um</strong>a história <strong>de</strong> terror absurdo, não<br />
se apoquente: <strong>é</strong> mesmo. Ao ponto <strong>de</strong> as causas serem tão anónimas quanto o papão: <strong>é</strong> a<br />
mundialização, isto <strong>é</strong>, “pessoa ausente em parte incerta”. É a flexibilida<strong>de</strong>, isto <strong>é</strong>, “salve-se<br />
quem pu<strong>de</strong>r”. Os governos vão fazendo os gestos e emitindo as palavras que <strong>de</strong>finem o hábito<br />
<strong>de</strong> governar, mas <strong>de</strong> facto pouco po<strong>de</strong>m. Se está a acabar o contrato social em que julgávamos<br />
viver – e por muito imperfeito que fosse -, proponham <strong>um</strong>a alternativa. Mas não nos <strong>de</strong>speçam<br />
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