Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
– Tamb<strong>é</strong>m me lembro disso. Havia <strong>um</strong>a professora fantástica, a Fernanda Ulrich, que tinha a<br />
mistura certa <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e ternura e ensinava <strong>um</strong> pouco a contrapelo do ensino oficial do<br />
regime. <strong>Este</strong> mapa tem a ver com isso. Ela apontava para Goa e dizia: “Isto já não existe!”.<br />
– Era <strong>um</strong> mapa exactamente igual a este?<br />
– Era. Fui resgatá-lo à Feira da Ladra.<br />
– Em casa havia meninas?<br />
– Tenho <strong>um</strong> irmão mais velho e <strong>um</strong>a irmã mais nova; ela apareceu quando eu tinha nove, <strong>de</strong>z<br />
anos. Em casa era óptimo. Os meus pais pertencem ao que se po<strong>de</strong>ria chamar a primeira classe<br />
m<strong>é</strong>dia portuguesa <strong>de</strong> tipo internacional!<br />
– Ou seja?<br />
– Era <strong>um</strong>a família muito autónoma, muito lisboeta. Como o meu pai <strong>é</strong> <strong>um</strong> quadro, na área da<br />
gestão <strong>de</strong> empresas, <strong>é</strong> <strong>um</strong>a pessoa muito internacionalizada e trabalhava n<strong>um</strong>a multinacional.<br />
Começámos por viver nos Açores, no aeroporto <strong>de</strong> Santa Maria. Era <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> colónia <strong>de</strong><br />
americanos, ingleses e alguns continentais que viviam ali n<strong>um</strong> ambiente muito cosmopolita. Os<br />
valores que os meus pais criaram para si próprios e nos passaram eram muitos arredios ao<br />
conservadorismo português, quer o <strong>de</strong> classe alta, quer o pequeno burguês, quer o <strong>de</strong> raízes<br />
rurais. Foi <strong>um</strong>a educação muito baseada na liberda<strong>de</strong>, no respeito mútuo, e n<strong>um</strong>a solidarieda<strong>de</strong><br />
que não <strong>é</strong> forçada.<br />
– Mas cristã?<br />
– Não, <strong>de</strong> todo. Isso tamb<strong>é</strong>m faz parte da <strong>de</strong>finição maluca que estava a usar, a da classe m<strong>é</strong>dia<br />
internacional. Sem nenh<strong>um</strong>a ligação religiosa, mas sem aquela coisa anti-clerical, laica,<br />
republicana, que há em Portugal.<br />
– Os meninos do col<strong>é</strong>gio eram <strong>de</strong> famílias mais conservadoras ou burguesas?<br />
– Havia <strong>um</strong>a preocupação social da directora que aceitava miúdos que achava interessantes,<br />
inteligentes, mas que tivessem menos recursos. Havia <strong>um</strong>a clara busca <strong>de</strong> <strong>um</strong> ambiente liberal e<br />
laico. Mas não era <strong>um</strong> col<strong>é</strong>gio <strong>de</strong> experiências educacionais alternativas.<br />
– A infância e a pr<strong>é</strong>-adolescência parecem marcadas por <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> harmonia. Não houve<br />
sobressaltos?<br />
– Houve. No ciclo, fui parar à Francisco Arruda, na altura dirigida por <strong>um</strong>a pessoa muito<br />
interessante que at<strong>é</strong> se suicidou, o Calvet <strong>de</strong> Magalhães. Foi <strong>um</strong> prenúncio do ensino<br />
experimental. Havia <strong>um</strong> igual peso <strong>de</strong> aulas normais e aulas que não eram aulas, eram os clubes<br />
(<strong>de</strong> inglês, <strong>de</strong> matemática). Estava n<strong>um</strong>a turma integrada, meta<strong>de</strong> dos meus colegas eram<br />
<strong>de</strong>ficientes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esclerose múltipla at<strong>é</strong> invisuais, e isso permitiu normalizar as relações. Como<br />
era <strong>um</strong>a utopia, tinha os lados negativos das utopias: tínhamos que vestir <strong>um</strong> uniforme que<br />
cortasse as diferenças <strong>de</strong> classe (<strong>um</strong> blusão horrível!). Mas as diferenças sobressaíam noutras<br />
coisas.<br />
– Como por exemplo?<br />
– Estavam lá uns miúdos que eram família do Am<strong>é</strong>rico Tomás ou do Marcello Caetano. Ao fim<br />
do dia aparecia o carro da presidência do conselho <strong>de</strong> ministros.<br />
– Quem <strong>é</strong> que o ia buscar?<br />
– Ia e vinha sozinho <strong>de</strong> autocarro.<br />
– Nunca se sentiu discriminado?<br />
– Não. Aquela gente não era muito interessante.<br />
– Ter essa segurança aos <strong>de</strong>z anos <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa espantosa.<br />
233