Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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sempre a corrigir o que se diz, po<strong>de</strong>-se pedir <strong>de</strong>sculpa, usar tons <strong>de</strong> voz que matizam o conteúdo<br />
explícito das palavras, etc. Se isso <strong>é</strong> possível ao telefone – que funciona em radio-time, mais o <strong>é</strong><br />
ao vivo, que funciona em body-time, porque aí <strong>é</strong> o próprio corpo, a sua linguagem, as<br />
expressões faciais, que fazem o grosso da comunicação. É sempre possível evitar o conflito, ou<br />
geri-lo, ou passar por estados emocionais muito diferentes no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> <strong>um</strong>a “conversa <strong>de</strong><br />
caf<strong>é</strong>”.<br />
Mas o e-mail introduziu <strong>um</strong>a coisa nova: juntou a gravida<strong>de</strong> e o peso da comunicação escrita à<br />
leveza e à rapi<strong>de</strong>z da comunicação oral. Verba volant, scripta manent, como diziam os<br />
“antigos”. Só que, no caso do e-mail, a escrita “mantem-se” atrav<strong>é</strong>s do “voo” das palavras.<br />
Escrever algo e enviá-lo logo, como se <strong>de</strong> <strong>um</strong>a conversa telefónica se tratasse, po<strong>de</strong> ter<br />
resultados <strong>de</strong>sastrosos. Não só por causa da ausência do lapso <strong>de</strong> tempo, causada pela<br />
possibilida<strong>de</strong> tecnológica (que se transforma em tentação) <strong>de</strong> comunicar logo (“<strong>de</strong>spachar o<br />
assunto”). É tamb<strong>é</strong>m porque o tipo <strong>de</strong> escrita mediada (por teclado e ecrã) retira gravida<strong>de</strong> e<br />
apela ao impulso (como usar <strong>um</strong>a <strong>de</strong>scascadora automática em vez <strong>de</strong> pelar lentamente batata a<br />
batata).<br />
Se se juntar a isto o facto <strong>de</strong> que a maioria das pessoas <strong>de</strong> qualquer modo não compreen<strong>de</strong> os<br />
princípios e artimanhas da retórica (i<strong>de</strong>ntificar a ironia versus o sarcasmo, etc), os resultados<br />
po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>sastrosos quando os iletrados recorrem – muitas vezes pela primeira vez... – a <strong>um</strong>a<br />
tecnologia que se baseia na escrita. Nunca tive tantos conflitos como os gerados pelo mail. E<br />
<strong>de</strong>pois já <strong>é</strong> tar<strong>de</strong> para corrigir por telefone. Mais ainda ao vivo, pois o mail, à partida, serviu<br />
para suprir a dificulda<strong>de</strong> logística <strong>de</strong> encontrar as pessoas ao vivo.<br />
Enquanto não se incorporarem skills a<strong>de</strong>quados à comunicação por e-mail, vou tomando alguns<br />
cuidados. No meu caso não adianta esperar, rever e reler o que escrevo – as coisas parecem<br />
sempre óptimas porque surgem no ecrã com o ar limpo e acabado <strong>de</strong> <strong>um</strong> texto impresso.... Para<br />
mim o truque não <strong>é</strong>, portanto, t<strong>é</strong>cnico, mas sim <strong>é</strong>tico: nunca escrever nada que não se<br />
conseguisse dizer na cara do <strong>de</strong>stinatário. Acho que os “antigos” tamb<strong>é</strong>m diziam isto dos textos,<br />
no tempo em que não havia tempo electrónico.<br />
Um cão furando o telhado<br />
(Webpage, 30.03.03)<br />
Acordo com <strong>um</strong> abcesso n<strong>um</strong> <strong>de</strong>nte. Mesmo assim tenho que ir a <strong>um</strong>a reunião do Conselho<br />
Municipal <strong>de</strong> Segurança, <strong>um</strong> órgão que reúne <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> juntas a<br />
representantes da PSP, para avaliar a situação <strong>de</strong> segurança em Lisboa. A reunião era<br />
extraordinária – acho que lhe chamaram mesmo “<strong>de</strong> emergência”. Porquê? Santana Lopes<br />
explicou: por causa da situação internacional. É claro que não se lembrou <strong>de</strong> dizer que o<br />
governo nos pôs nessa situação ao subscrever a guerra, mas isso são amendoins. Toda a gente o<br />
ouviu, muito s<strong>é</strong>ria, falar <strong>de</strong> máscaras, <strong>de</strong> guerra bacteriológica, <strong>de</strong> segurança civil – sempre<br />
queixando-se imenso <strong>de</strong> que o governo central não dá, não ajuda, não faz. Terminado o<br />
discurso, intervêm os conselheiros. Curiosamente, todos se esqueceram da guerra. Lisboa <strong>é</strong><br />
pacata e toda a gente pr<strong>é</strong>-ressonava naquela sala dos Paços do Concelho a cheirar a República.<br />
Falaram, isso sim, e já que a dica estava dada pela tenebrosa palavra “segurança”, sobre os<br />
problemas das suas ruas e bairros: os traficantes <strong>de</strong> droga, o el<strong>é</strong>ctrico 28 que não passa por<br />
causa do trânsito encravado, as esquadras <strong>de</strong> polícia mal localizadas, e por aí fora. No fundo foi<br />
<strong>um</strong> belo acto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência civil sem querer: a terrinha <strong>é</strong> <strong>de</strong>masiado perif<strong>é</strong>rica para nos<br />
preocuparmos com guerras bacteriológicas. Temos outras. A cereja no bolo foi ouvir os relatos<br />
macabros do representante <strong>de</strong> Alcântara, preocupado com a relação curiosa entre Ponte 25 <strong>de</strong><br />
Abril, a lei da gravida<strong>de</strong>, e a precarieda<strong>de</strong> do parque habitacional. O macaco <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong><br />
pneus que caiu em cima <strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m, ainda vá que não vá; a proposta <strong>de</strong> construção d<strong>um</strong> museu<br />
com os n parafusos e porcas e objectos vários que vão caindo at<strong>é</strong> que <strong>é</strong> provocatória – e<br />
surrealista. Mas o mais giro foi ouvir a história da engenheira agrónoma que, relaxadamente<br />
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