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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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Qual o lisboeta que não diz viver n<strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> linda? Mesmo que <strong>de</strong>pois se queixe do seu<br />

“actual estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação” e das “asneiras que foram feitas”? O mesmo discurso <strong>de</strong><br />

mistificação <strong>é</strong> prosseguido pelos escritores e cineastas – normalmente estrangeiros – que se<br />

apaixonam por Lisboa. Eles servem <strong>de</strong> guias para milhares <strong>de</strong> turistas que acabam por ter essa<br />

mesma i<strong>de</strong>ia idílica <strong>de</strong> Lisboa, pois já vinham preparados para senti-la (o turismo <strong>é</strong> <strong>um</strong>a forma<br />

<strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o como qualquer outra). A propaganda oficial, seja n<strong>um</strong> folheto, seja n<strong>um</strong> clip ví<strong>de</strong>o<br />

n<strong>um</strong> avião da TAP antes <strong>de</strong> aterrar em Lisboa, segue a mesma linha. E os lisboetas anfitriões<br />

i<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>m, aspas aspas.<br />

O resultado <strong>de</strong>sta fantasia colectiva <strong>é</strong> <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> reflexo condicionado. Mostra-se e visitase<br />

<strong>um</strong>a zona restrita da cida<strong>de</strong>, basicamente os bairros históricos. Perpetuam-se invocações,<br />

lugares e textos míticos como os <strong>de</strong>scobrimentos, o Tejo, e Fernando Pessoa. E elogia-se o<br />

clima. Pouco importa que a verda<strong>de</strong>ira Lisboa seja feita <strong>de</strong> ruas hediondas la<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> pr<strong>é</strong>dios<br />

construídos por patos bravos, sem passeios ou com os ditos ocupados por carros, tudo isto<br />

<strong>de</strong>corado com taipais, lamaçais, buracos e <strong>um</strong>a paisagem urbana a recordar Beirute <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

bombar<strong>de</strong>ada. Pouco importa que, mesmo nos “maravilhosos” bairros históricos – esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong><br />

Disneylândia da ida<strong>de</strong> m<strong>é</strong>dia, alimentada a pobreza e mantida para pacificação dos mo<strong>de</strong>rnos<br />

quando regressam ao conforto do primeiro mundo – os pr<strong>é</strong>dios estejam a <strong>de</strong>sfazer-se com <strong>um</strong>a<br />

esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> lepra ou que as pessoas que os habitam sejam miseráveis, doentes e <strong>de</strong>primidas.<br />

Pouco importa que, durante a contemplação idílica do Tejo, esteja a chover torrencialmente, que<br />

tenha <strong>de</strong>morado <strong>um</strong>a hora para percorrer meio quilómetro no meio <strong>de</strong> <strong>um</strong> trânsito digno <strong>de</strong><br />

Calcutá ou que, ao regressar a casa, se trema <strong>de</strong> frio e h<strong>um</strong>ida<strong>de</strong> na ausência <strong>de</strong> aquecimento<br />

apenas porque gerações <strong>de</strong> antepassados nos endoutrinaram que vivemos n<strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong><br />

trópico. E, para cúmulo da tortura chinesa, essas casas são vendidas a preço <strong>de</strong> ouro.<br />

Pois bem, hoje estou tão irritado que digo sem peias nem complexos: Lisboa <strong>é</strong> <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> feia,<br />

suja, miserável, velha e não antiga, com gente mesquinha, feia, mal vestida e malcriada, com<br />

ruas, trânsito, pr<strong>é</strong>dios e enquadramento paisagístico <strong>de</strong> bradar aos c<strong>é</strong>us, aliás o único sítio<br />

<strong>de</strong>cente para bradar – salvo quando está a chover como se estiv<strong>é</strong>ssemos no <strong>de</strong>gredo n<strong>um</strong>a<br />

colónia africana há dois s<strong>é</strong>culos atrás.<br />

A água sobe e o lamaçal encharca os p<strong>é</strong>s. Passa <strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssas camionetas – meu <strong>de</strong>us, quantas<br />

camionetas tem esta parvónia! – que projecta a lama para as calças; <strong>um</strong>a motoreta barulhenta<br />

fura os tímpanos; foge-se para <strong>um</strong> caf<strong>é</strong>, mas <strong>é</strong> <strong>um</strong> sítio gelado on<strong>de</strong> insistem em manter as<br />

portas abertas e para al<strong>é</strong>m do lixo que peja o chão, a luz <strong>de</strong> n<strong>é</strong>on sobre as mesas <strong>de</strong> plástico<br />

branco provoca <strong>um</strong>a <strong>de</strong>pressão profunda. Alg<strong>um</strong>as velhas arrastam-se queixando-se <strong>de</strong> doenças.<br />

O empregado <strong>é</strong> malcriado. Há <strong>um</strong>a televisão ligada – que digo, duas! – gritando em competição<br />

com as motorizadas lá fora. Lá, on<strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m cospe no chão, perante o olhar vagamente<br />

escandalizado <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que <strong>de</strong>ixa o seu cão largar <strong>um</strong>a bosta no passeio.<br />

Mas toda a gente – presi<strong>de</strong>nte da câmara, candidatos das oposições, turistas, escritores e<br />

cineastas estrangeiros e, para cúmulo, os habitantes – acha que vive n<strong>um</strong> idílio <strong>de</strong> História,<br />

Cultura, preservação, cosmopolitismo, hospitalida<strong>de</strong>, clima ameno, conforto e “joie <strong>de</strong> vivre”.<br />

Eu acho que vivo na periferia do Imp<strong>é</strong>rio, lá on<strong>de</strong> a Europa acaba e a África começa, no<br />

terceiro-mundo do primeiro. E suspeito que anda toda a gente feita n<strong>um</strong> “complot” para manter<br />

esta porcaria como está. Se calhar ainda vão promover a coisa a património da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>,<br />

“urbanizações” e tudo, subúrbios e tudo, lixo e tudo, carros e tudo. Enclausurado neste horror,<br />

corro o risco <strong>de</strong> ficar patrimonializado e, <strong>um</strong> dia, dar por mim a dizer, como <strong>um</strong> “zombie”<br />

endoutrinado, que vivo na cida<strong>de</strong> mais linda do mundo. Tirem-me daqui!<br />

Sem título<br />

(Webpage, 6.10.01 c)<br />

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