Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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homofobia. Como ningu<strong>é</strong>m parece querer ver isso, as baterias são apontadas para o Mal, como<br />
se ele surgisse do nada. Assim se conseguem furos jornalísticos, voyeurismo q.b., reprodução <strong>de</strong><br />
preconceitos vários, e a auto-satisfação <strong>de</strong> quem se julga estar na norma e no conforto <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
família tradicional frente à TV e ao “Mal lá fora”.<br />
Em primeiro lugar, o famoso Bibi. Existe em inglês <strong>um</strong>a expressão, fall guy, que significa o<br />
indivíduo que arca com as culpas, normalmente as dos outros al<strong>é</strong>m da sua. Não <strong>é</strong> o mesmo que<br />
bo<strong>de</strong> expiatório – que <strong>é</strong> sempre <strong>um</strong>a vítima – pois o fall guy <strong>é</strong>, tamb<strong>é</strong>m ele, <strong>um</strong> culpado. Pelo<br />
que já se percebeu, Bibi terá não só praticado os actos pedófilos como terá sido <strong>um</strong> proxeneta,<br />
parte <strong>de</strong> <strong>um</strong>a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> abusos sexuais e prostituição <strong>de</strong> menores cujos beneficiários permanecem<br />
na sombra. O quadro social da hipocrisia está aqui todo retratado: homens po<strong>de</strong>rosos e em<br />
cargos importantes, os mesmos que normalmente proclamam virtu<strong>de</strong>s morais e atacam todas as<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s alternativas; e <strong>um</strong> órfão, Bibi, criado na Casa Pia, tornado funcionário da mesma. É<br />
como se a própria instituição do orfanato/internato c<strong>um</strong>prisse <strong>um</strong>a função social perversa: ela<br />
supostamente serve para suprir a falta da família, essa instituição chave dos discursos<br />
conservadores; mas <strong>é</strong> ao orfanato que se vai buscar a carne para canhão – neste caso para<br />
satisfazer os <strong>de</strong>sejos que os próprios passam a vida a con<strong>de</strong>nar. Nunca as relações entre po<strong>de</strong>r e<br />
sexualida<strong>de</strong> terão sido tão claras. Para que este jogo hipócrita funcione <strong>é</strong> necessário haver<br />
algu<strong>é</strong>m que sirva <strong>de</strong> intermediário. Quem melhor do que aquele que <strong>é</strong> totalmente criado pela<br />
instituição? Sempre foi essa a função dos capatazes: intermediários a favor dos po<strong>de</strong>rosos.<br />
N<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> em que constantemente se proclama o valor da “Família”, da<br />
heterossexualida<strong>de</strong> 2[1] normativa, e se cria <strong>um</strong>a imagem beatífica das crianças, o orfanato surge<br />
como o negativo da família. “Família” (tradicional) e orfanato fazem sistema. O orfanato serve<br />
para suprir a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> c<strong>um</strong>prir o “i<strong>de</strong>al” <strong>de</strong> toda a gente viver em família biológica e<br />
em ambiente <strong>de</strong> harmonia. Por isso o orfanato <strong>é</strong> <strong>um</strong> mundo à parte: os seus muros escon<strong>de</strong>m a<br />
impossibilida<strong>de</strong> daquele i<strong>de</strong>al social ser c<strong>um</strong>prido ou viável. Por isso esses col<strong>é</strong>gios, por muita<br />
cosm<strong>é</strong>tica que se faça, parecem sempre pertencer à categoria que os sociólogos chamam<br />
“instituições totais”, como as prisões. Não são só os criminosos, os loucos ou os doentes que são<br />
postos à margem da socieda<strong>de</strong>; são tamb<strong>é</strong>m as crianças pobres ou sem família, que assim<br />
comprovam a irracionalida<strong>de</strong> do i<strong>de</strong>al conservador <strong>de</strong> família.<br />
A alternativa ao sistema Família Tradicional/Orfanato não <strong>é</strong> suficientemente promovida: apoio e<br />
estímulo a famílias não tradicionais; promoção da adopção em modalida<strong>de</strong>s que não tenham que<br />
ser imitações da biologia; e, obviamente, n<strong>um</strong> quadro <strong>de</strong> bem estar social, n<strong>um</strong> país on<strong>de</strong> <strong>é</strong><br />
imperdoável existir os actuais níveis <strong>de</strong> pobreza e exclusão. Não vamos lá apenas com famílias<br />
segundo o i<strong>de</strong>al católico e burguês nem com <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> que convive bem com diferenças<br />
abissais entre ricos e pobres.<br />
Outro drama da questão da pedofilia <strong>é</strong> que ela nos surge sempre como <strong>um</strong>a coisa extemporânea,<br />
como <strong>um</strong> cataclismo que acontece <strong>de</strong> repente. Infelizmente não <strong>é</strong> assim. A pedofilia <strong>é</strong> como que<br />
o terceiro elemento (melhor: o efeito perverso) do sistema Família Tradicional / Orfanato. É<br />
<strong>um</strong>a velha prática, constante e prolífica, se bem que silenciosa. Parte do drama social <strong>de</strong>stas<br />
revelações pren<strong>de</strong>-se com o facto <strong>de</strong> vir à luz do dia aquilo que se tenta sempre manter na<br />
sombra. Por muito dramático que seja o caso – e <strong>é</strong>-o – há que reconhecer que não houve<br />
nenh<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> nisto tudo: há anos e s<strong>é</strong>culos que a pedofilia <strong>é</strong> praticada: no seio das<br />
famílias, na igreja, nas instituições do tipo dos orfanatos.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> tentar compreen<strong>de</strong>r as razões psicológicas para a inclinação pedófila, o<br />
que interessa mesmo <strong>é</strong> garantir o c<strong>um</strong>primento <strong>de</strong> <strong>um</strong> contrato social mínimo para a<br />
sexualida<strong>de</strong>: as relações sexuais só <strong>de</strong>vem ocorrer entre pessoas capazes <strong>de</strong> o fazerem com<br />
mútuo consentimento. Convencionámos, e bem, que os menores não têm em m<strong>é</strong>dia os recursos<br />
2[1] O meu corrector ortográfico não reconhece a palavra “heterossexualida<strong>de</strong>”, mas reconhece<br />
“homossexualida<strong>de</strong>”. Curioso, não <strong>é</strong>?<br />
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