Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
mesmo entre os meus “correligionários”. Ou sobretudo entre eles. Des<strong>de</strong> logo, porque quem<br />
está profissionalmente na política po<strong>de</strong> dizer certas coisas e não po<strong>de</strong> dizer outras. Por exemplo,<br />
não po<strong>de</strong> dizer o que acha sobre as pessoas que votam LePen. Isto <strong>é</strong>, não po<strong>de</strong> dizer que são<br />
ignorantes e estúpidas. A alternativa, como em tantos outros casos semelhantes, parece ser a<br />
“carida<strong>de</strong> sociológica”: esses eleitores seriam vítimas <strong>de</strong> algo.<br />
É-nos dito que esse “algo” tem a ver com as políticas <strong>de</strong> centro praticadas tanto pela direita<br />
quanto pela esquerda institucionais e com os efeitos da globalização neoliberal. É-nos dito ainda<br />
que se essas esquerdas soubessem i<strong>de</strong>ntificar bem os problemas e propôr as soluções correctas,<br />
os eleitores dos LePens <strong>de</strong>ste mundo teriam votado nela. Parecendo confirmar esta tese, <strong>é</strong>-nos<br />
dito tamb<strong>é</strong>m que muitos eleitores dos PCs votam agora na extrema direita. Estas i<strong>de</strong>ias só<br />
fariam sentido se a vivência da <strong>de</strong>mocracia que temos fosse baseada n<strong>um</strong> contrato racional e<br />
honesto. Mas como <strong>é</strong> isso possível se o discurso, a est<strong>é</strong>tica, a publicida<strong>de</strong> e a prática da política<br />
institucional se apresentam, quando muito, como <strong>um</strong>a racionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sonesta (eu digo x, mas<br />
toda a gente sabe que vou fazer y e <strong>de</strong>pois dizer que sempre disse que faria y)?<br />
Mas há mais e po<strong>de</strong> ser formulado como <strong>um</strong>a pergunta “ing<strong>é</strong>nua”: quereríamos nós, na<br />
esquerda, o voto <strong>de</strong>ssas pessoas? O voto <strong>de</strong> quem <strong>é</strong> capaz <strong>de</strong> votar LePen? As ansieda<strong>de</strong>s e<br />
vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssas pessoas po<strong>de</strong>riam ter sido satisfeitas por <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> esquerda? Que<br />
quereria isso dizer sobre a política <strong>de</strong> esquerda? Por mim, certamente não me reconheceria nela.<br />
É este o problema da carida<strong>de</strong> sociológica: aproxima-se <strong>de</strong>masiado do espírito evangelizador, <strong>de</strong><br />
adaptação das mensagens prof<strong>é</strong>ticas aos traços culturais <strong>de</strong> cada povo ou <strong>é</strong>poca. E acredita<br />
<strong>de</strong>masiado na racionalida<strong>de</strong> das pessoas e das suas escolhas (ou quando muito, na sua<br />
ingenuida<strong>de</strong> em acreditarem na suposta racionalida<strong>de</strong> e honestida<strong>de</strong> do sistema).<br />
Outro aspecto estranho das reacções inflamadas contra o avanço da extrema-direita <strong>é</strong> a<br />
facilida<strong>de</strong> com que as memórias do nazi-fascismo são convocadas. A facilida<strong>de</strong> com que a estes<br />
partidos e eleitores se chama <strong>de</strong> fascistas ou nazis. Não me parece a <strong>de</strong>signação correcta; não<br />
por purismo das <strong>de</strong>finições, mas pelo perigo que comportam. É que essas <strong>de</strong>finições, ao<br />
classificarem <strong>um</strong>a coisa do presente com etiquetas do passado, acabam por não perceber a<br />
novida<strong>de</strong> que temos à nossa frente. Se estas pessoas e estes partidos fossem “simplesmente”<br />
nazi-fascistas era fácil eliminá-los, proibi-los ou <strong>de</strong>nunciá-los aos olhos <strong>de</strong> todos. O problema<br />
está em que eles são fenómenos novos. Trata-se, sem dúvida, <strong>de</strong> fenómenos que assentam em<br />
gran<strong>de</strong> medida na exclusão, na insegurança, na mudança <strong>de</strong> valores. Nisso há semelhanças com<br />
o passado. Mas a escala e o vol<strong>um</strong>e são diferentes: trata-se <strong>de</strong> mais gente, <strong>de</strong> gente que participa<br />
mais no processo <strong>de</strong>mocrático e eleitoral, gente que teve mais acesso à educação formal, que<br />
tem muito acesso aos “media” e que divulga as suas i<strong>de</strong>ias não à margem da socieda<strong>de</strong> mas no<br />
seio <strong>de</strong>la.<br />
Um só exemplo, assustador, da novida<strong>de</strong> da coisa e que me foi dado por <strong>um</strong> amigo:<br />
aparentemente o lí<strong>de</strong>r da extrema direita holan<strong>de</strong>sa <strong>é</strong> ass<strong>um</strong>idamente gay e admirador do<br />
filósofo Michel Foucault. Note-se que o traço distintivo não <strong>é</strong> a prática <strong>de</strong> <strong>um</strong>a sexualida<strong>de</strong>, mas<br />
o ass<strong>um</strong>ir <strong>de</strong>la como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com efeitos políticos. E Foucault, al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> reconhecido<br />
militante dos direitos dos gays, está na base das críticas e <strong>de</strong>sconstruções mais tenazes da<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal e <strong>é</strong> extensamente utilizado nas tradições acad<strong>é</strong>micas mais progressistas<br />
nas ciências sociais.... Outro exemplo possível seria o apoio dado à Frente nacional por muitos<br />
imigrantes <strong>de</strong> primeira geração no Sul da França. Ou, em Portugal, esse fenómeno curioso que <strong>é</strong><br />
<strong>um</strong>a juventu<strong>de</strong> que está disposta a votar ora em <strong>Miguel</strong>, ora em Paulo Portas, consoante esteja<br />
mais interessada nas questões <strong>de</strong> cost<strong>um</strong>es ou nas questões económicas. É <strong>um</strong> mundo novo, e<br />
estamos longe <strong>de</strong> percebê-lo.<br />
Mas voltemos a <strong>um</strong>a das i<strong>de</strong>ias iniciais: a questão do “centrão”. Quando se começou a falar<br />
<strong>de</strong>sta semelhança nas formas <strong>de</strong> governar da direita e da esquerda institucionais, a expressão foi<br />
certeira. Mas, com o seu uso e abuso, po<strong>de</strong> cair-se no perigo <strong>de</strong> esquecer subtis mas importantes<br />
distinções. O governo <strong>de</strong> Jospin não foi, certamente, no quadro dos centrões europeus, o pior<br />
115