Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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condições para continuar o projecto <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong>a utopia social protestante e puritana do Novo<br />
Mundo. No entanto, a diversificação e a complexificação da socieda<strong>de</strong> americana não ficaram<br />
imunes à regulação puritana. Tal como a <strong>é</strong>tica protestante era <strong>um</strong> pau <strong>de</strong> dois bicos (ou o<br />
indivíduo empreen<strong>de</strong>dor mas controlado, ou o “salve-se quem pu<strong>de</strong>r”), o puritanismo <strong>de</strong>sdobrase<br />
em duas tendências opostas: <strong>um</strong>a que reprime, outra que incentiva. A primeira continua bem<br />
patente hoje nas restrições aos mais diversos comportamentos; a segunda tem vindo a crescer<br />
sob a forma genericamente <strong>de</strong>signada como “correcção política”.<br />
No primeiro caso, não faltam exemplos: <strong>é</strong> sempre surpreen<strong>de</strong>nte para os europeus saberem que<br />
nalg<strong>um</strong>as gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s americanas existem horas, dias e locais (por exemplo, perto <strong>de</strong><br />
igrejas) em que não se po<strong>de</strong> comprar álcool; que as discotecas fecham às duas da manhã; que as<br />
leis anti-sodomia persistem em muitos Estados; que o anti-tabagismo ass<strong>um</strong>e proporções <strong>de</strong><br />
paranóia. No segundo caso, tornam-se quase irritantes as preocupações com o vocabulário e os<br />
comportamentos quando estão em causa grupos minoritários. Em s<strong>um</strong>a, o controlo puritano<br />
<strong>de</strong>slocou-se da esfera da organização da família, da coisa económica e da distribuição da<br />
riqueza para duas outras esferas. Uma <strong>é</strong> a dos comportamentos que po<strong>de</strong>m alterar o estado <strong>de</strong><br />
consciência ou dar prazer (beber, comer, f<strong>um</strong>ar, dançar, fazer amor). A outra <strong>é</strong> a da <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais baseadas n<strong>um</strong> só crit<strong>é</strong>rio (e normalmente <strong>um</strong> dos que estão na origem da<br />
exclusão <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s): a etnicida<strong>de</strong> e a raça, o g<strong>é</strong>nero e a sexualida<strong>de</strong>.<br />
Faça agora o leitor <strong>um</strong>a comparação com Portugal, on<strong>de</strong> nem a <strong>é</strong>tica protestante nem o<br />
puritanismo estão na base dos nossos valores, mas on<strong>de</strong> estes penetram, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> secularizados<br />
na Am<strong>é</strong>rica. Três perguntas se impõem, então: criaremos <strong>um</strong> híbrido, em que os nossos laços e<br />
<strong>de</strong>pendências familiares se articularão com o individualismo e a <strong>é</strong>tica do trabalho? Em que o<br />
nosso controlo dos comportamentos atrav<strong>é</strong>s da vergonha se articulará com a legislação estatal<br />
sobre os mesmos? Em que a nossa tradição política, mais classista, se articulará com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
segmentares e interesses especiais? Se conseguirmos fazê-lo, estaremos a escolher o melhor <strong>de</strong><br />
dois mundos e a <strong>de</strong>itar fora o pior.<br />
Notícias da Frente<br />
(Portugal Diário, 2001)<br />
Três assuntos chamaram-me a atenção nos jornais portugueses das últimas semanas: as recentes<br />
posições da Igreja Católica Romana (doravante ICR), as especulações em torno da existência <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> “lobby gay” e o vazio <strong>de</strong> conteúdos que ro<strong>de</strong>ou a preparação do congresso do PS.<br />
Aparentemente diferentes, os três assuntos configuram, afinal, <strong>um</strong>a “guerra cultural” ou das<br />
mentalida<strong>de</strong>s. Esta guerra ocupa gran<strong>de</strong> parte do espaço outrora <strong>de</strong>dicado às “guerras sociais”,<br />
aquelas que se travavam em torno dos mo<strong>de</strong>los económico e social <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>. Vamos por<br />
partes.<br />
Como vários cronistas disseram, o doc<strong>um</strong>ento da ICR <strong>é</strong> <strong>um</strong> cuidado trabalho <strong>de</strong> retórica<br />
camuflando <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ologia que se situa nos antípodas das tendências actuais da nossa vida em<br />
socieda<strong>de</strong>. At<strong>é</strong> aqui, tudo bem: qualquer <strong>um</strong> tem o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o “status quo” ou, melhor<br />
dizendo, o regresso ao passado. O problema começa quando se justifica essa i<strong>de</strong>ologia com <strong>um</strong>a<br />
interpretação falseada da realida<strong>de</strong>. Afirmam os dirigentes da ICR (<strong>um</strong>a vez <strong>de</strong>smontada a sua<br />
retórica, como o fez Eduardo Prado Coelho) que Portugal e Catolicismo se confun<strong>de</strong>m; e que,<br />
não sendo nem católicas nem portuguesas as recentes alterações legislativas (e <strong>de</strong><br />
comportamentos) na nossa socieda<strong>de</strong>, elas só po<strong>de</strong>m ser o resultado da importação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias<br />
estrangeiras. Assim, mudanças na atitu<strong>de</strong> perante as drogas, a família ou a sexualida<strong>de</strong> são<br />
vistas como resultado da infiltração do Mal vindo <strong>de</strong> fora. Acontece, todavia, que não existe<br />
<strong>um</strong>a tradição especificamente portuguesa nestas áreas da vida. Assim como acontece que vai<br />
<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> distância entre algu<strong>é</strong>m se <strong>de</strong>clarar católico e sê-lo a cem por cento e segundo os<br />
cânones da ICR. Em Portugal, o processo <strong>de</strong> laicização e secularização acontece em larga<br />
medida <strong>de</strong>ntro do referencial do catolicismo: a pessoa <strong>de</strong>clara-se católica mas não pratica; vai à<br />
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