Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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po<strong>de</strong>m recusar ver os horrores cometidos em nome <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> esquerda ou como certos<br />
aspectos do pensamento dito <strong>de</strong> esquerda potenciaram esses horrores. Não <strong>é</strong> só <strong>de</strong>pois do<br />
nazismo que não se po<strong>de</strong> pensar o mundo da mesma maneira; <strong>de</strong>pois do estalinismo tão pouco;<br />
em segundo lugar, porque assistimos hoje a manifestações que, cobertas da retórica da<br />
libertação, da emancipação e dos direitos, <strong>de</strong>monstram ser potenciais ou reais reedições do<br />
terror. Veja-se o terrorismo da ETA ou <strong>de</strong> sectores radicais do IRA; veja-se a acção do Estado e<br />
ex<strong>é</strong>rcito israelita e dos sectores radicais palestinianos e/ou fundamentalistas; veja-se os<br />
nacionalismos no leste da Europa ou a pulsão racista da tradição nacionalista basca.<br />
Tempos houve em que <strong>um</strong> movimento <strong>de</strong> libertação, nacionalista, lutando contra <strong>um</strong> po<strong>de</strong>r<br />
colonial, planeando libertar <strong>um</strong>a nação e superar a economia política do colonialismo, parecia<br />
ser a coisa mais bela do mundo? Talvez. Inclino-me para aí – embora os resultados não tenham<br />
sido famosos. Tempos houve em que a luta armada contra a agressão norte-americana inspirava<br />
sentimentos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são e reconhecimento da justiça da causa? Talvez. Mas tratava-se <strong>de</strong><br />
situações <strong>de</strong> agressão unilateral, ao arrepio das convenções internacionais ou na ausência <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mocracia, por muito formal que esta possa ser. As acções da ETA são não só con<strong>de</strong>náveis<br />
como completamente injustificáveis atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> qualquer arg<strong>um</strong>entação histórica; assim como<br />
qualquer nacionalismo que contenha o g<strong>é</strong>rmen da intolerância. O problema está em que todas as<br />
acções violentas são, em <strong>de</strong>mocracia, injustificáveis, assim como todos os nacionalismos<br />
contêm o g<strong>é</strong>rmen da intolerância. Ou a esquerda compreen<strong>de</strong> isto ou não <strong>de</strong>ixará nunca <strong>de</strong><br />
pactuar com o diabo, enquanto (na melhor tradição da “novilíngua” do Big Brother <strong>de</strong> George<br />
Orwell) só a sua retórica se torna angelical.<br />
“Não se passa nada”, Lisboa, Capital do Nada. Marvila, 2001. Edição Extramuros, pp<br />
395-7, 2002<br />
Quem não conhece a sensação <strong>de</strong> regressar a Portugal <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ausência mais ou menos<br />
longa e ouvir a expressão “nada” como resposta à pergunta “Então, o que <strong>é</strong> que se passou por<br />
cá?”. Quem não conhece a sensação <strong>de</strong> abrir o jornal, todas as manhãs, e sentir que nada <strong>de</strong><br />
novo se passou? E, no entanto, quem não conhece a sensação <strong>de</strong> que, em todos os dias da vida,<br />
qualquer coisa <strong>de</strong> novo e substantivo acontece no plano pessoal?<br />
A última pergunta <strong>é</strong> já, em parte, resposta às duas primeiras. O divórcio entre o plano pessoal,<br />
por <strong>um</strong> lado, e o social e político, por outro, parece ser cada vez maior. Nos jornais e televisões<br />
relatam-se acontecimentos que se instalam na continuida<strong>de</strong> dos problemas por resolver: o<br />
conflito do M<strong>é</strong>dio Oriente, as fomes em África, as oscilações económicas. At<strong>é</strong> os eventos<br />
extraordinários – quedas <strong>de</strong> aviões, catástrofes naturais, maravilhas da ciência – encaixam n<strong>um</strong><br />
registo pr<strong>é</strong>-<strong>de</strong>terminado: o das quedas <strong>de</strong> aviões, o das catástrofes naturais, etc... Na vida<br />
política intitucional, tamb<strong>é</strong>m as novida<strong>de</strong>s – que em princípio <strong>de</strong>veriam constituir surpresas <strong>de</strong><br />
conteúdo, preenchimentos do nada – se reduzem a algo muito semelhante à dança das ca<strong>de</strong>iras:<br />
diferentes traseiros sentam-se em momentos diferentes, só que nas mesmas ca<strong>de</strong>iras, dispostas<br />
no mesmo círculo.<br />
Verda<strong>de</strong> seja dita, o “cada vez mais” que acima escrevi <strong>de</strong>verá ser repensado. Tudo nos indica<br />
que n<strong>um</strong> passado não muito distante, a sensação do nada nos eventos públicos não existia pela<br />
simples razão <strong>de</strong> que as pessoas comuns não tinham acesso a eles. Tudo <strong>de</strong>verá ter parecido<br />
muito mais recheado <strong>de</strong> conteúdo, porque tudo era mais misterioso. Um pouco como aquelas<br />
pessoas por cujo silêncio e aura nos apaixonamos, apenas para <strong>de</strong>scobrirmos, <strong>de</strong>siludidos, que<br />
eram simplesmente estúpidas. O acesso à informação <strong>é</strong>, pois, e paradoxalmente, a razão da<br />
sensação do nada, do processo <strong>de</strong> banalização.<br />
Todavia, esta conquista da informação (e da <strong>de</strong>mocracia) instaura <strong>um</strong> novo v<strong>é</strong>u. Já não <strong>é</strong> o da<br />
ignorância completa, mas sim o da ilusão <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> transparência, <strong>de</strong> acesso ao que<br />
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