Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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temos <strong>um</strong> erro <strong>de</strong> paralaxe, que <strong>é</strong> o seguinte: nós pensamos que do lado do pensamento crítico<br />
das ciências sociais somos capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar contradições, mas em relação aos nativos já<br />
achamos que são coerentes. Então o que acontece? Justamente nesta questão da dicotomia do<br />
pensamento essencialista, baseado n<strong>um</strong>a dicotomia e com a simetria simbólica entre o<br />
masculino e o feminino, esquecemos que esse mo<strong>de</strong>lo local, do senso com<strong>um</strong>, po<strong>de</strong> ser muito<br />
mais nuançado do que nós imaginamos e po<strong>de</strong> ter zonas cinzentas <strong>de</strong> escape, as quais, aliás, <strong>é</strong><br />
óbvio nós esperarmos que existam, porque senão não haveria história e, por exemplo, eu<br />
verifiquei isso fora do terreno on<strong>de</strong> eu estive, quer dizer, <strong>de</strong>pois do terreno, por circunstâncias<br />
absolutamente casuais, eu aju<strong>de</strong>i <strong>um</strong>a colega minha n<strong>um</strong>a pesquisa sobre o Fado em Lisboa, fui<br />
a muitas socieda<strong>de</strong>s recreativas que são <strong>de</strong> bairro, muito populares... e comecei a perceber que<br />
havia sempre <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> figura, <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> personagem masculino (no sentido do dimorfismo<br />
sexual), <strong>de</strong> homem que cantava o Fado, no sentido do dicionário, mas que, do ponto <strong>de</strong> vista das<br />
categorias populares, urbanas, <strong>de</strong> Lisboa, era obviamente “bicha”... e o que acontecia? Esse<br />
indivíduo não só estava completamente integrado no meio, como a atribuição exterior <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le, embora feita atrav<strong>é</strong>s da feminilização, permitia a introdução <strong>de</strong> <strong>um</strong>a outra<br />
categoria, permitia o reconhecimento <strong>de</strong> que era feminilizado, mas homem. Quer dizer, se a<br />
dicotomia fosse clara e fosse constantemente operativa, então logicamente ele tinha que ser<br />
mulher. Quando nós estabelecemos a dicotomia do masculino e do feminino e a atribuímos aos<br />
nativos, esquecemos dos casos interm<strong>é</strong>dios, on<strong>de</strong> as próprias categorias nativas não admitem<br />
que esse indivíduo passe para a categoria do feminino e atribuem <strong>um</strong> estatuto ambíguo com<br />
lugar próprio em que, no fundo, sexo e gênero estão presentes.<br />
Mariza – É óbvio... <strong>é</strong> por isso que eu acho que o livro da Strathern <strong>é</strong> importante, não só porque<br />
ela <strong>de</strong>screve tão bem a lógica melan<strong>é</strong>sia, mas porque ela nos ajuda a pensar que a nossa não <strong>é</strong><br />
tão lógica como nós acharíamos que fosse, se fosse como <strong>de</strong>veria ser. Se o sistema fosse tão<br />
coerente como nós imaginamos que <strong>de</strong>veria ser o nosso, ele não precisaria ser reiteradamente<br />
reposto. Porque temos sempre reafirmações do masculino e do feminino? E porque a<br />
antropologia inglesa sempre nos ensinou que a gente sempre <strong>de</strong>scobre isso nas situações <strong>de</strong><br />
contestação, <strong>é</strong> quando algu<strong>é</strong>m contesta <strong>um</strong>a <strong>de</strong>terminada posição, quando algu<strong>é</strong>m diz: “essa<br />
mulher está fora <strong>de</strong> lugar, esse homem está fora <strong>de</strong> lugar”, que se percebe o que <strong>é</strong> o lugar, mas<br />
esse lugar <strong>é</strong> normativo, isso não quer dizer que na prática as pessoas se comportem como<br />
<strong>de</strong>veriam se comportar se seguissem a norma. Malinowski já mostrou que há <strong>um</strong>a norma e o<br />
que as pessoas fazem com essa norma no cotidiano; acho que com gênero <strong>é</strong> a mesma coisa, <strong>é</strong><br />
exatamente a mesma coisa, como no famoso caso dos dois primos que se amavam, at<strong>é</strong> que o<br />
caso se tornou público... aí estava o problema, enquanto todo mundo fingia que não estava<br />
acontecendo nada, tudo estava <strong>de</strong> acordo com a norma, <strong>um</strong>a vez <strong>de</strong>nunciado que ela foi<br />
quebrada...<br />
Adriana – Só que naquele exemplo dado por <strong>Miguel</strong> há limites que são empíricos mesmo. A<br />
distinção entre sexo e gênero, <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a maneira, faz parte do sentido com<strong>um</strong>, a antropologia<br />
tradicional trabalhou com <strong>um</strong>a noção do senso com<strong>um</strong>.<br />
Mariza – Acho que não faz parte do senso com<strong>um</strong> a distinção entre sexo e gênero.<br />
Adriana – Em <strong>de</strong>terminados contextos, <strong>um</strong> homem efeminado e at<strong>é</strong> homossexual po<strong>de</strong><br />
corporificar <strong>um</strong>a masculinida<strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorizada e ainda assim ele será consi<strong>de</strong>rado <strong>um</strong> homem.<br />
Em outros, não.<br />
<strong>Miguel</strong> – Isso <strong>é</strong> <strong>um</strong> bom exemplo, o travestismo <strong>é</strong> <strong>um</strong> conhecimento folk da distinção sexual...<br />
Em <strong>de</strong>terminados contextos, o fato <strong>de</strong> <strong>um</strong> cara ser efeminado e at<strong>é</strong> homossexual po<strong>de</strong> significar<br />
masculinida<strong>de</strong> a menos, mas ele ainda <strong>é</strong> homem. Em outros...<br />
Adriana – Acho que talvez <strong>de</strong>va explicar melhor meu “incômodo”. É claro que quando lemos<br />
seus textos, assim como os <strong>de</strong> outros antropólogos, estamos n<strong>um</strong>a situação muito diferente da<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> autor enfrentando os problemas colocados pelo seu material. Lemos prestando atenção às<br />
coerências teóricas e analíticas. Me chamou a atenção a utilização <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong> autores que,<br />
<strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a maneira, discordariam uns dos outros. Por exemplo, Strathern e Bourdieu. Há <strong>um</strong>a<br />
id<strong>é</strong>ia <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> presente em Bourdieu e impensável em Strathern. Da mesma maneira, me<br />
chamou a atenção que, após conceitualizar gênero à maneira <strong>de</strong> Strathern, você diga, “vou tratar<br />
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