Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
culpar tudo: RTP, Santana, <strong>de</strong>magogia, populismo, eu sei lá. Mas quando se levanta a questão<br />
do casino cai-se necessariamente na retórica esquerdista <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar a “economia <strong>de</strong> casino”,<br />
com todo o puritanismo inerente (repito: quer se queira, quer não); e quando se pe<strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
referendo para <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong>stas, corre-se o risco <strong>de</strong> ser-se responsável pela morte prematura<br />
do instituto ao nível <strong>de</strong> Lisboa. A coisa não mobiliza. A coisa nem sequer <strong>é</strong> muito importante. É<br />
sem dúvida escandalosa, <strong>é</strong> sem dúvida suspeita do ponto <strong>de</strong> vista da influência dos interesses<br />
económicos na administração municipal, <strong>é</strong> sem dúvida sinal <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia nos<br />
processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Por isso há que <strong>de</strong>nunciar o que há a <strong>de</strong>nunciar nesta questão do casino:<br />
nos media, no parlamento, na Assembleia Municipal. Mas porquê o referendo? Porquê tornar<br />
esta questão no principal combate político municipal (e, por se tratar <strong>de</strong> Lisboa, nacional)?<br />
Como respon<strong>de</strong>r aos cidadãos que se perguntam que importância tem o assunto quando<br />
comparado com a completa ausência <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida nesta cida<strong>de</strong>? Com a habitação? Com<br />
o escândalo dos estádios e do Euro 2004? Com os carros nos passeios? Com o trânsito?<br />
Para acabar <strong>de</strong> vez com o g<strong>é</strong>nero na língua portuguesa<br />
Para acabar <strong>de</strong> vez com ê g<strong>é</strong>nere nê língüe portuguese<br />
(Webpage, 9.11.02)<br />
Po<strong>de</strong>mos fazer trinta por <strong>um</strong>a linha para alterar as categorias <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero com que vivemos e que<br />
teimam em reproduzir-se à nossa volta; po<strong>de</strong>m os homens e as mulheres, hetero ou<br />
homossexuais (e muitas outras coisas) tentar escapar aos ditames da cultura e do controlo social<br />
relativos ao g<strong>é</strong>nero e à sexualida<strong>de</strong>; na linguagem, na roupa, no corpo, nas acções, no trabalho,<br />
no h<strong>um</strong>or e na festa há mil e <strong>um</strong>a maneiras <strong>de</strong> tentar dar a volta ao script que nos <strong>é</strong> imposto.<br />
Tentar subverter as normas e os códigos, estilhaçando, em última instância, as próprias noções<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> atribuída (por g<strong>é</strong>nero, por sexo, por orientação sexual) seria o propósito do<br />
movimento queer. Mas, qual al<strong>de</strong>ia gaulesa, há <strong>um</strong> código básico que resiste e estraga tudo.<br />
Serve para comunicarmos e enten<strong>de</strong>rmos o mundo – mas serve tamb<strong>é</strong>m para o formatarmos. No<br />
caso que nos toca, <strong>é</strong> a língua portuguesa, a qual, como boa filha do Latim, insiste em ter <strong>um</strong>a<br />
codificação <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero tenaz. Por provocação, h<strong>um</strong>or ou mesmo a s<strong>é</strong>rio, proponho o fim do<br />
g<strong>é</strong>nero na língua portuguesa. Aqui fica <strong>um</strong> exemplo. Vejam como <strong>é</strong> <strong>um</strong> trecho na nossa língua<br />
com g<strong>é</strong>nero e a alternativa sem g<strong>é</strong>nero. Eis, pois, as primeiras linhas <strong>de</strong> “O Primo Basílio” <strong>de</strong><br />
Eça <strong>de</strong> Queiroz (ou, melhor, “Ê Prime Basílie”)<br />
“Tinham dado onze horas no cuco da sala <strong>de</strong> jantar. Jorge fechou o vol<strong>um</strong>e <strong>de</strong> Luiz Figuier que<br />
estivera folheando <strong>de</strong>vagar, estirado na velha voltaire <strong>de</strong> marroquim escuro, espreguiçou-se,<br />
bocejou e disse:<br />
-Tu não te vais vestir, Luiza?<br />
-Logo<br />
Ficara sentada à mesa, a ler o “Diário <strong>de</strong> Notícias”, no seu roupão <strong>de</strong> manhã <strong>de</strong> fazenda preta,<br />
bordado a soutache, com largos botões <strong>de</strong> madrep<strong>é</strong>rola; o cabelo louro <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong>smanchado,<br />
com <strong>um</strong> tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, <strong>de</strong><br />
perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras: com o cotovelo encostado à<br />
mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus <strong>de</strong>dos, dois an<strong>é</strong>is <strong>de</strong> rubis<br />
miudinhos davam cintilações escarlates.”<br />
“Tinham dado es onze hores ne cuque <strong>de</strong> sale <strong>de</strong> jantar. Jorge fechou ê vol<strong>um</strong>e <strong>de</strong> Luiz Figuier<br />
que estivera folheando <strong>de</strong>vagar, estira<strong>de</strong> ne velhe voltaire <strong>de</strong> marroquim escure, espreguiçou-se,<br />
bocejou e disse:<br />
- Tu não te vais vestir, Luize?<br />
- Logo<br />
Ficara senta<strong>de</strong> ae mese, a ler ê “Diárie <strong>de</strong> Notícies”, ne sê roupã <strong>de</strong> manhã <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong> prete,<br />
borda<strong>de</strong> a soutache, com largues botãs <strong>de</strong> madrep<strong>é</strong>role; ê cabele loure en pouque <strong>de</strong>smancha<strong>de</strong>,<br />
com en tone seque dê calore dê travesseire, enrolava-se, torci<strong>de</strong> ne alte dê cabece pequenine, <strong>de</strong><br />
perfile bonite; ê sue pele tinha ê brancure tenre e láctee <strong>de</strong>s loures: com ê cotovele encosta<strong>de</strong> ae<br />
133