Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Por coincidência, a crónica do passado domingo sobre as reacções escritas dos leitores,<br />
emparelhava com <strong>um</strong>a carta do director do “Expresso” protestando contra <strong>um</strong>a crónica anterior.<br />
A <strong>de</strong> domingo passado não era <strong>um</strong>a resposta à carta. A <strong>de</strong> hoje <strong>é</strong> que <strong>é</strong>. Não para criar pol<strong>é</strong>mica:<br />
mas sim porque a reacção <strong>de</strong> JAS <strong>é</strong> <strong>um</strong> bom exemplo <strong>de</strong> <strong>um</strong> problema mais geral: o que po<strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> cidadão fazer com o po<strong>de</strong>r dos media?<br />
Na crónica visada eu abordava a questão geral da recuperação actual <strong>de</strong> símbolos e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />
ensino do antigo regime. A alusão ao “Expresso” (introduzida graças ao “motif” da Cartilha<br />
oferecida por aquele jornal) prendia-se com outra questão: a edição <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1996,<br />
que chegou às mãos do público no sábado, dia 13, v<strong>é</strong>spera das eleições presi<strong>de</strong>nciais. Esta<br />
continha <strong>um</strong> editorial <strong>de</strong> JAS <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o voto em Cavaco Silva. Ponto <strong>um</strong>: não há qualquer<br />
problema nisso. Os jornais são livres <strong>de</strong> dizerem o que quiserem; assim como eu sou livre <strong>de</strong><br />
dizer que não compro <strong>um</strong> jornal por causa das suas opiniões. Os jornais – e ao contrário do<br />
senso-com<strong>um</strong> estabelecido, sobretudo em relação ao “Expresso” – não são instituições<br />
intocáveis. Muito menos o lugar da verda<strong>de</strong>.<br />
Mas tinha havido algo <strong>de</strong> especial que me tivesse chocado naquela edição do “Expresso” e que<br />
não tivesse comentado? Sem dúvida: as opiniões que não são escritas mas que passam<br />
subliminarmente sob a forma <strong>de</strong> imagens e edição. Exemplifico. Na página 2, duas fotos: n<strong>um</strong>a,<br />
Sampaio <strong>é</strong> <strong>um</strong>a cabecinha quase invisível afogada n<strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> populares e microfones;<br />
noutra, Cavaco <strong>é</strong> <strong>um</strong>a cara proeminente e sorri<strong>de</strong>nte, dando <strong>um</strong> aperto <strong>de</strong> mão a <strong>um</strong> popular,<br />
ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> mãos <strong>de</strong>sejosas <strong>de</strong> o c<strong>um</strong>primentar. Na página 3, Sampaio <strong>é</strong> fotografado <strong>de</strong> costas,<br />
perdido na escuridão <strong>de</strong> <strong>um</strong> comício; Cavaco, na página 4, surge <strong>de</strong> frente, gesticulando vitória,<br />
no centro <strong>de</strong> <strong>um</strong> círculo <strong>de</strong> luz (holofote? “Objectiva”?). As legendas respectivas rezam assim:<br />
“Sampaio escolheu o terreno mais favorável para o fim da campanha: concelhos dominados por<br />
câmaras do PS”. E: “O Norte <strong>de</strong>u novo ânimo a Cavaco e na segunda semana <strong>de</strong> campanha,<br />
marcada pelo inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Tarouca, já havia na caravana quem acreditasse na vitória”. Na<br />
“Revista”, a escolha das fotos (dos micro-segundos da gestualida<strong>de</strong> dos visados...) reforça o<br />
“sub-texto”: Sampaio parece aflito, inconstante, <strong>de</strong>scontrolado; Cavaco, composto, sereno,<br />
estável. Se os discursos escritos po<strong>de</strong>m servir <strong>de</strong> base para o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, já<br />
com as imagem as coisas são mais subliminares.<br />
Nada disto <strong>é</strong> ilegal. Ou sequer ilegítimo. Sê-lo-ia se se tratasse, por exemplo, da TV do Estado.<br />
Os orgãos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e os organismos públicos são controláveis pelos cidadãos, atrav<strong>é</strong>s do voto,<br />
da queixa às autorida<strong>de</strong>s ou da imprensa. Acontece, por<strong>é</strong>m, que os media são tamb<strong>é</strong>m <strong>um</strong> po<strong>de</strong>r;<br />
mas sem qualquer controlo <strong>de</strong>mocrático. Longe <strong>de</strong> mim sugerir que o tivessem da mesma forma<br />
que os orgãos do Estado. O po<strong>de</strong>r dos media só po<strong>de</strong> ser controlado pelo seu público. Se se<br />
gosta, compra-se, se não se gosta não se compra. É assim como boicotar as latas <strong>de</strong> at<strong>um</strong> que<br />
não tenham escrito que não foram mortos golfinhos na pesca do produto. Mas tal como neste<br />
caso <strong>é</strong> preciso <strong>um</strong>a pr<strong>é</strong>via consciência ambiental, no caso dos media faz falta a “educação para<br />
os media”.<br />
Afirmar publicamente que se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> comprar <strong>um</strong> jornal por não concordar com as suas<br />
opiniões faz parte da minha concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia – felizmente diferente da <strong>de</strong> JAS.<br />
Reconhecer o (pequeno) po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> influência que tenho como cronista (enquanto o jornal “s<strong>é</strong>rio”<br />
me <strong>de</strong>ixar, como JAS parece insinuar) e ass<strong>um</strong>i-lo, parece-me mais límpido do que a estrat<strong>é</strong>gia<br />
do “Expresso” no dia 12 <strong>de</strong> Janeiro. A minha função não <strong>é</strong> ser “edificante” (como sugere JAS<br />
em tom moralista), mas sim “<strong>de</strong>sedificante” (entre aspas, para que se perceba a ironia...), no<br />
sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar o que pretensamente se apresenta como líquido e cristalino. Incluindo a<br />
sacralização dos livros e da leitura (sim<strong>é</strong>trica da sua diabolização) ou o “branqueamento” do<br />
po<strong>de</strong>r e do negócio dos media com <strong>um</strong>a retórica contraditória, que ora fala <strong>de</strong> “objectivida<strong>de</strong>”,<br />
ora se protege com <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia fetichizada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão.<br />
Quanto à Cartilha, se JAS quiser, posso <strong>de</strong>volver-lha pelo correio. Expresso.<br />
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