Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Pontap<strong>é</strong> na bola<br />
(“Visão”, 22.05.97)<br />
Uma notícia breve na televisão dá-nos conta da violência nos estádios <strong>de</strong> futebol da Rom<strong>é</strong>nia. O<br />
futebol <strong>de</strong>ve estar a substituir a <strong>de</strong>silusão com a mudança política – ou com a não-mudança.<br />
Futebol, economia subterrânea, mafias e sentimentos regionalistas <strong>de</strong>vem ali estar intimamente<br />
ligados. No futebol investe-se a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar, associar, fazer mudar, quando a política<br />
não quer ou não <strong>de</strong>ixa.<br />
Mas será só na Rom<strong>é</strong>nia? Por cá, os “casos do futebol” são sinais do empobrecimento da<br />
<strong>de</strong>mocracia e da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervenção dos cidadãos, do <strong>de</strong>scalabro da política partidária e<br />
do jornalismo. Um dia <strong>de</strong>stes teremos os dirigentes partidários como dirigentes <strong>de</strong> clubes, os<br />
casos do futebol nas primeiras páginas, os media arvorando-se em <strong>de</strong>fensores da <strong>de</strong>mocracia<br />
mas <strong>de</strong>dicando-se à guerra clubista. A qual, por sua vez, mobilizará milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentes<br />
apelando ao regionalismo, quando na realida<strong>de</strong> serão os contribuintes <strong>de</strong> <strong>um</strong>a estranha<br />
economia paralela. O pior <strong>de</strong> tudo <strong>é</strong> que se calhar já estamos a viver esse futuro, essa<br />
“romenização” do país.<br />
Um dos efeitos da fraqueza da cidadania <strong>é</strong> a falta <strong>de</strong> subtileza, complexida<strong>de</strong> e h<strong>um</strong>or. O h<strong>um</strong>or<br />
como qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir trazer ao cimo as contradições em que se vive e não só como<br />
risota revisteira. A crispação, o culto da pureza, a atenção ao sacril<strong>é</strong>gio, a cristalização do<br />
passado, são efeitos da marginalização e da “ignorantização” das pessoas. As reacções ao<br />
projecto <strong>de</strong> intervenção artística “Para Al<strong>é</strong>m da Água” po<strong>de</strong>m ser sinal disso. Gostei muito<br />
quando vi a reprodução do painel em que a cara <strong>de</strong> Salazar está la<strong>de</strong>ada por dois silos <strong>de</strong><br />
cereais, cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>les legendado com as palavras “Po<strong>de</strong>r” e “I<strong>de</strong>ologia”. Dias <strong>de</strong>pois estive em<br />
Beja, participando n<strong>um</strong> <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> encerramento <strong>de</strong> <strong>um</strong> ciclo <strong>de</strong> cinema sobre “A Terra e o<br />
Trabalho” no Alentejo. Na Praça da República, lá estava o Salazar e os seus silos, quais colunas<br />
do alto do parque Eduardo VII. Gostei mais ainda. Na manhã seguinte voltei a Lisboa, apenas<br />
para ver na TV a notícia <strong>de</strong> que o painel central, a cara do ditador, tinha sido incendiado (por<br />
<strong>de</strong>sconhecidos, claro).<br />
Do mesmo modo que a “Reforma Agrária” <strong>é</strong> vista por muitos como a encarnação <strong>de</strong> coisas que<br />
estão para lá <strong>de</strong>la (a participação, a revolução, a força do PCP, a utopia alcançada, o paraíso<br />
perdido), assim a representação da cara <strong>de</strong> Salazar <strong>é</strong> vista como a encarnação dos respectivos<br />
contrários. Se a evolução política e cultural do país tivesse sido (e estivesse a ser) outra, muitos<br />
alentejanos aceitariam o painel e a força interventiva, <strong>de</strong> trabalho da memória, <strong>de</strong> confrontação<br />
com a História nele implícitas. Não têm os silos as palavras “Po<strong>de</strong>r” e “I<strong>de</strong>ologia” sobrepostas?<br />
Quem lançou fogo não <strong>é</strong> estúpido, nem ignorante em mat<strong>é</strong>rias <strong>de</strong> arte, nem justiceiro, nem<br />
revoltado em relação às pretensões artísticas. É algu<strong>é</strong>m a quem Portugal ainda não soube ou não<br />
quis explicar porque <strong>é</strong> que tanto Salazar como a Reforma Agrária falharam e, ao mesmo tempo,<br />
se cristalizaram na memória como ícones.<br />
Será que estamos con<strong>de</strong>nados a lutar apenas com armas e causas do passado, com Salazar e o 25<br />
<strong>de</strong> Abril? Será que estamos con<strong>de</strong>nados a intervir no presente por interpostas pessoas dos donos<br />
da bola? Há, felizmente, sinais contrários. Portugal tem visto nascer alg<strong>um</strong>as produções<br />
culturais novas, alg<strong>um</strong>a consciência ecologista, alg<strong>um</strong>a movimentação anti-racista e alg<strong>um</strong>a<br />
política da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Gosto <strong>de</strong> pensar que no dia 4 <strong>de</strong> Maio se <strong>de</strong>u <strong>um</strong> momento histórico com<br />
a marcha da Sida. Chamo-lhe histórico sem receio, pois estes acontecimentos não têm que ser<br />
grandiosos e heróicos. Muitas vezes só os i<strong>de</strong>ntificamos a posteriori. Nunca em Portugal, a não<br />
ser em torno da questão do aborto, se tinha conseguido mobilizar gente para <strong>um</strong>a acção <strong>de</strong> rua<br />
em torno da política sexual. Digo isto sem qualquer receio <strong>de</strong> ferir a susceptibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
promotores e participantes: toda a gente sabe que a luta contra a Sida não <strong>é</strong> nem nunca foi <strong>um</strong><br />
movimento “normal” <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> com vítimas ou <strong>de</strong> pedido <strong>de</strong> fundos para a saú<strong>de</strong>. Nunca<br />
foi só isso. Foi sempre tamb<strong>é</strong>m – e sobretudo cá – <strong>um</strong> catalizador, <strong>um</strong> espaço, <strong>um</strong>a motivação,<br />
para a afirmação da cidadania e da política sexual e dos estilos <strong>de</strong> vida.<br />
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