Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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– Absolutamente. As pessoas influenciam-se, convencem-se, <strong>de</strong>sconvencem-se, exercem<br />
autorida<strong>de</strong>, manipulam, fazem alianças. Tudo isso são relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, e há perdas e ganhos<br />
que são vistos em termos <strong>de</strong> prestígio. Vivem períodos da vida, curtos pelo que consta, em que<br />
parece que construiram <strong>um</strong>a utopia. É por isso que gostam tanto do amor. Porque, sobretudo no<br />
momento da paixão, sentem <strong>um</strong>a ligação íntima e preciosa com o outro. Eu acho que parte da<br />
sensação boa que têm <strong>é</strong> porque sentem que suspen<strong>de</strong>ram as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
– Alg<strong>um</strong>a vez pensou que podia ser <strong>de</strong>spedido por ass<strong>um</strong>ir a sua homossexualida<strong>de</strong>?<br />
Normalmente as pessoas não ass<strong>um</strong>em porque receiam ser <strong>de</strong>spedidas ou discriminadas.<br />
– A revelação da sexualida<strong>de</strong> <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa que, no meu caso, fiz n<strong>um</strong> momento e não tem que<br />
ser feita todos os dias. Os outros fazem <strong>de</strong>pois o trabalho mental que querem com isso. É a<br />
primeira coisa importante para mim: não passo a vida preocupado nem a fazer essa revelação. A<br />
segunda, <strong>é</strong> que foi feita por razões muito específicas. Dizer que se <strong>é</strong> homossexual não <strong>é</strong> <strong>um</strong>a<br />
revelação da intimida<strong>de</strong>.<br />
– Então?<br />
– É <strong>um</strong>a revelação i<strong>de</strong>ntitária que tem muito <strong>de</strong> político. A intimida<strong>de</strong> <strong>é</strong> outra coisa: não revelo<br />
com quem vivo, <strong>de</strong> quem gosto, o que faço na cama, não mostro a minha cama, não revelo o<br />
que se passa na minha cabeça. A questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem <strong>um</strong>a força política e, para certas<br />
pessoas como eu, sinto que <strong>é</strong> <strong>um</strong>a obrigação social.<br />
– O que quer dizer com “pessoas como eu”?<br />
– Não gosto da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que <strong>é</strong> necessariamente <strong>um</strong> acto corajoso. Pessoas como eu po<strong>de</strong>m fazêlo<br />
com relativa tranquilida<strong>de</strong> porque têm <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> outros capitais ac<strong>um</strong>ulados. Sou <strong>um</strong>a<br />
pessoa <strong>de</strong> classe m<strong>é</strong>dia alta, culta (como se diz em Portugal), estou na universida<strong>de</strong> que <strong>é</strong> <strong>um</strong><br />
meio muito especial, tenho alg<strong>um</strong> prestígio, blá blá blá. Não corro riscos nenhuns <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r<br />
empregos, <strong>de</strong> se fecharem portas. Alg<strong>um</strong>as fechar-se-ão. Mas, por acaso, são aquelas que não<br />
me interessam.<br />
– E fecharam-se?<br />
– At<strong>é</strong> agora não. Não tentei abri-las, se calhar nunca vou testar o fechamento. Há funções em<br />
certas formas <strong>de</strong> hierarquia, representativa, administrativa, muito baseadas no prestígio e na<br />
imagem, que não me interessam. Não vou procurá-las nunca e se me forem oferecidas vão ser<br />
<strong>um</strong> enorme frete. Não têm a ver com a carreira acad<strong>é</strong>mica, mas com a carreira política. Mas <strong>é</strong><br />
importante dizer que <strong>é</strong> completamente legítimo para muitíssimas pessoas terem medo <strong>de</strong> revelar<br />
o que quer que seja. Há muitos meios on<strong>de</strong> as pessoas estão <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
– Quando ass<strong>um</strong>iu a sua orientação não temeu transformar-se no homossexual do país?<br />
– Claro, sobretudo n<strong>um</strong> meio pequeno como o nosso.<br />
– Na geração anterior sempre que se queria levar <strong>um</strong> homossexual a <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> televisão<br />
convidava-se o Guilherme Melo.<br />
– A coisa explodiu bastante, felizmente.<br />
– Tem essa percepção, muito mais pessoas <strong>de</strong>ram a cara?<br />
– Deram a cara pelas razões certas, para acções políticas <strong>de</strong> transformação das relações entre as<br />
pessoas.<br />
– Houve <strong>um</strong> momento preciso em que achou que <strong>de</strong>via dar a cara?<br />
– Publicamente foi no Público, assim “en passant”, a propósito do inci<strong>de</strong>nte do Candal e do<br />
Paulo Portas. Terminei a crónica com <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> adjectivos: o cronista, vírgula, isto, isto e<br />
aquilo, e <strong>um</strong> <strong>de</strong>les era gay. Fiz sempre questão em muitíssimas situações, tipo entrevistas em<br />
televisão, que o assunto não viesse à baila para não ser o centro da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa.<br />
Que não <strong>é</strong>.<br />
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