Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
se passa. Na realida<strong>de</strong>, “o que se passa”, passa-se por <strong>de</strong>trás e para lá do que <strong>é</strong> informado. Daí<br />
tamb<strong>é</strong>m o crescente gosto pela <strong>de</strong>scoberta sensacional, pelo segredo revelado, por tudo o que se<br />
passa nos bastidores, fora dos lugares protocolares <strong>de</strong> produção dos acontecimentos, das<br />
notícias, da fábrica da política. Hoje em dia, o folclore das disputas partidárias e i<strong>de</strong>ológicas,<br />
mascara <strong>um</strong>a estranha conivência entre adversários, que se telefonam, almoçam juntos,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das <strong>de</strong>cisões e tácticas uns dos outros. De modo semelhante, as redacções dos media<br />
e as agências noticiosas organizam a fábrica da informação na base <strong>de</strong> categorias pr<strong>é</strong>-<strong>de</strong>finidas,<br />
oferecendo aos cons<strong>um</strong>idores os eventos como produtos nas prateleiras <strong>de</strong> <strong>um</strong> supermercado.<br />
Esta consequência inesperada – este efeito colateral – da <strong>de</strong>mocracia e da socieda<strong>de</strong> aberta,<br />
conduziu a <strong>um</strong> crescente <strong>de</strong>sinteresse (e a <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sconfiança próxima da paranóia e da teoria da<br />
conspiração) pela coisa política tal como relatada mediaticamente. A atenção das pessoas<br />
<strong>de</strong>svia-se para outras coisas: para os seus interesses específicos, produzindo-se toda <strong>um</strong>a<br />
indústria <strong>de</strong> informação regida pelos gostos, especializada; para o futebol, <strong>um</strong> jogo on<strong>de</strong> os<br />
interesses são (ou parecem ser) claros e crus, com disputas que conduzem a resultados tangíveis;<br />
e para as coisas pessoais-tornadas-públicas, da auto-ajuda à coscuvilhice social, passando pelo<br />
voyeurismo e a busca da infinita diversida<strong>de</strong> individual.<br />
A sensação do nada adv<strong>é</strong>m, pois, do colapso (melhor: da sua não concretização plena) do<br />
mo<strong>de</strong>lo liberal da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, com instituições transparentes, vigiadas por <strong>um</strong>a<br />
informação livre. Esquecemo-nos, nesse processo – que não tem tanto tempo assim – <strong>de</strong> educar<br />
as pessoas para usufruirem <strong>de</strong>sses benefícios, isto <strong>é</strong>, para saberem do que se fala quando se fala<br />
<strong>de</strong> política. Esquecemo-nos <strong>de</strong> fazer cidadãos para preencherem essa cidadania prometida. Pior:<br />
são essas mesmas pessoas <strong>de</strong>seducadas, esses cidadãos <strong>de</strong>ficitários, que acabam ocupando<br />
lugares políticos (e cada vez mais na informação tamb<strong>é</strong>m), assim reproduzindo aquilo <strong>de</strong> que<br />
nos queixamos: a produção constante do nada.<br />
Visl<strong>um</strong>bra-se alg<strong>um</strong>a saída para isto? Acho que sim (pelo menos nos dias mais optimistas). A<br />
saída parece estar nas zonas híbridas da produção política e informacional: quando interesses<br />
específicos e estilos <strong>de</strong> vida ganham <strong>um</strong>a dimensão política por porem em causa o estado das<br />
coias e o contrato social tal como o conhecemos. Quando isto acontece, os media têm que ir<br />
atrás e, sem quererem, obrigam-se à renovação. E o mesmo acontece com os políticos, que ao<br />
irem buscar novas causas e interesses, são obrigados a repensar quer os gran<strong>de</strong>s esquemas<br />
interpretativos da coisa pública, quer os modos <strong>de</strong> funcionamento da fábrica da política. O<br />
ambiente, a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida urbana, o cons<strong>um</strong>o, as sexualida<strong>de</strong>s, a diversida<strong>de</strong> <strong>é</strong>tnica, as<br />
novas solidarieda<strong>de</strong>s e conflitos da socieda<strong>de</strong> pós-industrial instauram <strong>um</strong>a crise: tornam mais<br />
do que nunca evi<strong>de</strong>nte (e insuportável) a sensação <strong>de</strong> que “não se passa nada”, e abrem <strong>um</strong>a<br />
janela para que se passe alg<strong>um</strong>a coisa. Ou como dizem os chineses, crise e oportunida<strong>de</strong> são<br />
<strong>um</strong>a e a mesma coisa.<br />
Em Portugal, estamos a assistir aos primeiros passos <strong>de</strong>ssa transformação? Talvez. Vê-se <strong>um</strong><br />
pouco disso no surgimento <strong>de</strong> novas forças, como o Bloco <strong>de</strong> Esquerda, na actuação <strong>de</strong> alguns<br />
sectores do governo PS (infelizmente poucos), e, sobretudo, nos movimentos sociais e<br />
mobilizações da socieda<strong>de</strong> civil. Mas não vemos nada disso a acontecer na comunicação social<br />
tradicional que, no geral, não só enquistou como regrediu (veja-se a tristeza profunda <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
Público, que já foi jornal <strong>de</strong> referência). Uma vez mais, <strong>é</strong> na socieda<strong>de</strong> civil que surgem sinais<br />
estimulantes, ainda que poucos (penso na página “Non” da Internet).<br />
Para repegar em frases chinesas (se bem que <strong>de</strong> má fama...), “que mil políticas e informações<br />
alternativas floresçam!”.<br />
H<br />
(Revista Pl<strong>um</strong>a)<br />
194