13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

herói representa <strong>é</strong> o pequeno passo que o leva a ver o prisioneiro como ser h<strong>um</strong>ano. Como<br />

espelho. E o IRA que fosse para as urtigas. O segundo, surge com a <strong>de</strong>scoberta do sexo<br />

biológico da rapariga. Mas aí ele não consegue dar o passo em frente. O que vai bem com a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as questões da política do corpo têm sido as últimas na agenda das correntes <strong>de</strong><br />

mudança social no Oci<strong>de</strong>nte. Como <strong>um</strong> limiar intransponível, <strong>um</strong>a barreira para cuja força só<br />

encontramos a legitimação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a coisa a que chamamos Natureza e à qual conferimos o<br />

estatuto <strong>de</strong> Divinda<strong>de</strong>. Quando afinal <strong>é</strong> tudo <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> pilinhas e passarinhas.<br />

Em My Beautiful Laun<strong>de</strong>rette, o rapaz branco pobre e o rapaz indiano com parentes ricos,<br />

conseguem furar as barreiras <strong>de</strong> classe, raça e sexo, e inventam a sua vida. Fazem <strong>um</strong>a lavagem<br />

total. Em Jogo <strong>de</strong> Lágrimas, o herói consegue <strong>um</strong> último gesto re<strong>de</strong>ntor: arca com a culpa da<br />

morte da sua ex-amante, c<strong>um</strong>prindo pena em vez da rapariga do p<strong>é</strong>nis. No fim, ela visita-o na<br />

prisão. Muito bonita. Ele conta-lhe <strong>um</strong>a fábula que o soldado lhe havia contado: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

muito hesitar, o sapo aceita levar o escorpião ao outro lado do rio, pois este prometera não lhe<br />

fazer mal. Mas o escorpião não resiste e mata o sapo à mesma. Afogam-se os dois. “Não<br />

resisti”, disse aquele, “<strong>é</strong> a minha natureza”.<br />

A Política que vem<br />

(Jornal Manifesto, Abril 1994)<br />

Em The Transformation of Intimacy Anthony Gid<strong>de</strong>ns afirma: “As mulheres e os homens gay<br />

prece<strong>de</strong>ram a maioria dos heterossexuais no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> relações, no sentido que o<br />

termo veio a ass<strong>um</strong>ir hoje quando aplicado à vida pessoal. Porque tiveram <strong>de</strong> sobreviver sem os<br />

enquadramentos tradicionais do casamento, em condições <strong>de</strong> relativa igualda<strong>de</strong> entre os<br />

parceiros”. Esta frase tem <strong>um</strong>a importância política <strong>de</strong> que o próprio Gid<strong>de</strong>ns po<strong>de</strong>rá não<br />

suspeitar: transforma os gays <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> marginal em comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vanguarda –<br />

percursores <strong>de</strong> algo que virá (está em vias <strong>de</strong> vir) a ser <strong>um</strong> padrão generalizado. <strong>Este</strong> padrão <strong>é</strong>,<br />

nas palavras <strong>de</strong> Gid<strong>de</strong>ns, a relação pura: “<strong>um</strong>a situação em que a relação social <strong>é</strong> encetada pelo<br />

que vale por si própria”. Isto <strong>é</strong>, o fim do casamento como contrato <strong>de</strong> interesses ou como<br />

estrat<strong>é</strong>gia <strong>de</strong> in<strong>é</strong>rcia.<br />

É certo que tanto homo como heterossexuais têm vindo a experimentar este tipo <strong>de</strong> relação nas<br />

socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas oci<strong>de</strong>ntais, e nos nichos <strong>de</strong> “cultura global” das socieda<strong>de</strong>s não-oci<strong>de</strong>ntais.<br />

O aspecto central <strong>é</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a relação não serve prioritariamente para ter filhos ou para<br />

gerir eficazmente a reprodução social atrav<strong>é</strong>s da divisão sexual do trabalho (em casa e fora<br />

<strong>de</strong>la), mas sim para satisfazer inclinações afectivas e sexuais. Que já não são vistas como<br />

necessida<strong>de</strong>s ou pulsões, mas como escolhas. O que os casais homossexuais acrescentam <strong>de</strong><br />

radical <strong>é</strong> o facto <strong>de</strong> a própria possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter filhos (biológicos) ou do estabelecimento da<br />

divisão do trabalho com base no sexo não se colocar. Daí o ataque cerrado, por parte <strong>de</strong> Estados<br />

e Igrejas, ao reconhecimento público das ligações homossexuais (excepção feita à Escandinávia,<br />

on<strong>de</strong> o nível <strong>de</strong> audiência do Papa <strong>é</strong> miserável e toda a gente sabe ler e lê imenso). É que a<br />

questão põe-se mesmo aqui: no reconhecimento público. A forma <strong>de</strong> repressão mais eficaz <strong>é</strong><br />

<strong>um</strong>a mistura <strong>de</strong> política da avestruz com a estrat<strong>é</strong>gia <strong>de</strong> varrer o pó para <strong>de</strong>baixo do tapete. Em<br />

Portugal, funciona na perfeição: os homossexuais não se ass<strong>um</strong>em porque a socieda<strong>de</strong> os<br />

estigmatiza; a socieda<strong>de</strong> continua a estigmatizá-Ios porque eles não a confrontam. Por isso a<br />

recomendação do Parlamento Europeu para a legislação nos Estados membros contra a<br />

discriminação <strong>de</strong> pessoas com base na orientação sexual <strong>é</strong> extremamente importante. Aliás, não<br />

<strong>é</strong> preciso arg<strong>um</strong>entar muito: basta o Papa ter reagido nervosamente para se perceber que não <strong>é</strong><br />

<strong>um</strong> exercício fútil <strong>de</strong> retórica. Porque o casamento já não <strong>é</strong> só a união <strong>de</strong> duas parentelas, <strong>um</strong><br />

contrato <strong>de</strong> trabalho, reprodução, transmissão <strong>de</strong> bens e criação <strong>de</strong> crianças, futuras produtoras e<br />

reprodutoras. Cada vez mais <strong>é</strong> <strong>um</strong> acto simbólico <strong>de</strong> união afectiva, <strong>de</strong> proclamação da escolha<br />

do par perante os outros, <strong>de</strong> festa <strong>de</strong> amigos.<br />

171

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!