Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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herói representa <strong>é</strong> o pequeno passo que o leva a ver o prisioneiro como ser h<strong>um</strong>ano. Como<br />
espelho. E o IRA que fosse para as urtigas. O segundo, surge com a <strong>de</strong>scoberta do sexo<br />
biológico da rapariga. Mas aí ele não consegue dar o passo em frente. O que vai bem com a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as questões da política do corpo têm sido as últimas na agenda das correntes <strong>de</strong><br />
mudança social no Oci<strong>de</strong>nte. Como <strong>um</strong> limiar intransponível, <strong>um</strong>a barreira para cuja força só<br />
encontramos a legitimação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a coisa a que chamamos Natureza e à qual conferimos o<br />
estatuto <strong>de</strong> Divinda<strong>de</strong>. Quando afinal <strong>é</strong> tudo <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> pilinhas e passarinhas.<br />
Em My Beautiful Laun<strong>de</strong>rette, o rapaz branco pobre e o rapaz indiano com parentes ricos,<br />
conseguem furar as barreiras <strong>de</strong> classe, raça e sexo, e inventam a sua vida. Fazem <strong>um</strong>a lavagem<br />
total. Em Jogo <strong>de</strong> Lágrimas, o herói consegue <strong>um</strong> último gesto re<strong>de</strong>ntor: arca com a culpa da<br />
morte da sua ex-amante, c<strong>um</strong>prindo pena em vez da rapariga do p<strong>é</strong>nis. No fim, ela visita-o na<br />
prisão. Muito bonita. Ele conta-lhe <strong>um</strong>a fábula que o soldado lhe havia contado: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
muito hesitar, o sapo aceita levar o escorpião ao outro lado do rio, pois este prometera não lhe<br />
fazer mal. Mas o escorpião não resiste e mata o sapo à mesma. Afogam-se os dois. “Não<br />
resisti”, disse aquele, “<strong>é</strong> a minha natureza”.<br />
A Política que vem<br />
(Jornal Manifesto, Abril 1994)<br />
Em The Transformation of Intimacy Anthony Gid<strong>de</strong>ns afirma: “As mulheres e os homens gay<br />
prece<strong>de</strong>ram a maioria dos heterossexuais no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> relações, no sentido que o<br />
termo veio a ass<strong>um</strong>ir hoje quando aplicado à vida pessoal. Porque tiveram <strong>de</strong> sobreviver sem os<br />
enquadramentos tradicionais do casamento, em condições <strong>de</strong> relativa igualda<strong>de</strong> entre os<br />
parceiros”. Esta frase tem <strong>um</strong>a importância política <strong>de</strong> que o próprio Gid<strong>de</strong>ns po<strong>de</strong>rá não<br />
suspeitar: transforma os gays <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> marginal em comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vanguarda –<br />
percursores <strong>de</strong> algo que virá (está em vias <strong>de</strong> vir) a ser <strong>um</strong> padrão generalizado. <strong>Este</strong> padrão <strong>é</strong>,<br />
nas palavras <strong>de</strong> Gid<strong>de</strong>ns, a relação pura: “<strong>um</strong>a situação em que a relação social <strong>é</strong> encetada pelo<br />
que vale por si própria”. Isto <strong>é</strong>, o fim do casamento como contrato <strong>de</strong> interesses ou como<br />
estrat<strong>é</strong>gia <strong>de</strong> in<strong>é</strong>rcia.<br />
É certo que tanto homo como heterossexuais têm vindo a experimentar este tipo <strong>de</strong> relação nas<br />
socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas oci<strong>de</strong>ntais, e nos nichos <strong>de</strong> “cultura global” das socieda<strong>de</strong>s não-oci<strong>de</strong>ntais.<br />
O aspecto central <strong>é</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a relação não serve prioritariamente para ter filhos ou para<br />
gerir eficazmente a reprodução social atrav<strong>é</strong>s da divisão sexual do trabalho (em casa e fora<br />
<strong>de</strong>la), mas sim para satisfazer inclinações afectivas e sexuais. Que já não são vistas como<br />
necessida<strong>de</strong>s ou pulsões, mas como escolhas. O que os casais homossexuais acrescentam <strong>de</strong><br />
radical <strong>é</strong> o facto <strong>de</strong> a própria possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter filhos (biológicos) ou do estabelecimento da<br />
divisão do trabalho com base no sexo não se colocar. Daí o ataque cerrado, por parte <strong>de</strong> Estados<br />
e Igrejas, ao reconhecimento público das ligações homossexuais (excepção feita à Escandinávia,<br />
on<strong>de</strong> o nível <strong>de</strong> audiência do Papa <strong>é</strong> miserável e toda a gente sabe ler e lê imenso). É que a<br />
questão põe-se mesmo aqui: no reconhecimento público. A forma <strong>de</strong> repressão mais eficaz <strong>é</strong><br />
<strong>um</strong>a mistura <strong>de</strong> política da avestruz com a estrat<strong>é</strong>gia <strong>de</strong> varrer o pó para <strong>de</strong>baixo do tapete. Em<br />
Portugal, funciona na perfeição: os homossexuais não se ass<strong>um</strong>em porque a socieda<strong>de</strong> os<br />
estigmatiza; a socieda<strong>de</strong> continua a estigmatizá-Ios porque eles não a confrontam. Por isso a<br />
recomendação do Parlamento Europeu para a legislação nos Estados membros contra a<br />
discriminação <strong>de</strong> pessoas com base na orientação sexual <strong>é</strong> extremamente importante. Aliás, não<br />
<strong>é</strong> preciso arg<strong>um</strong>entar muito: basta o Papa ter reagido nervosamente para se perceber que não <strong>é</strong><br />
<strong>um</strong> exercício fútil <strong>de</strong> retórica. Porque o casamento já não <strong>é</strong> só a união <strong>de</strong> duas parentelas, <strong>um</strong><br />
contrato <strong>de</strong> trabalho, reprodução, transmissão <strong>de</strong> bens e criação <strong>de</strong> crianças, futuras produtoras e<br />
reprodutoras. Cada vez mais <strong>é</strong> <strong>um</strong> acto simbólico <strong>de</strong> união afectiva, <strong>de</strong> proclamação da escolha<br />
do par perante os outros, <strong>de</strong> festa <strong>de</strong> amigos.<br />
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