Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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começar a pensar se ass<strong>um</strong>irmos que estamos confrontados com <strong>um</strong>a questão política e não com<br />
<strong>um</strong>a questão puramente criminal. Isto parece evi<strong>de</strong>nte, mas não <strong>é</strong> assim que as coisas estão a ser<br />
apresentadas. Trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong>a questão política por <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> razões:<br />
a) Existem causas remotas para a actual situação: este atentado pertence a <strong>um</strong>a “or<strong>de</strong>m<br />
terrorista” estabelecida há já alg<strong>um</strong> tempo e na qual há dois tipos <strong>de</strong> actores – por <strong>um</strong> lado, as<br />
organizações clan<strong>de</strong>stinas (se<strong>de</strong>adas sobretudo em países <strong>de</strong> maioria árabe e/ou islâmica), por<br />
outro certos Estados (a saber, os EUA, Israel e os que albergam grupos terroristas, entre outros).<br />
b) A “or<strong>de</strong>m terrorista” relaciona-se, paradoxalmente (porque a URSS não era fruta que se<br />
cheirasse...), com o fim do equilíbrio “<strong>de</strong> terror” (a ameaça <strong>de</strong> guerra generalizada, <strong>de</strong> guerra<br />
nuclear, etc.) anterior à queda do Muro <strong>de</strong> Berlim. Sem União Sovi<strong>é</strong>tica, os Estados Unidos<br />
passaram a ser a única potência, confrontada agora não com Estados apoiados pela URSS, mas<br />
com grupos espontâneos e auto-geridos.<br />
c) Ela relaciona-se ainda com o facto <strong>de</strong> o problema israelo-palestiniano não ter sido resolvido e<br />
com o recru<strong>de</strong>scimento do fundamentalismo islâmico como alternativa <strong>de</strong>sesperada, <strong>de</strong> “f<strong>é</strong>”,<br />
após o falhanço dos projectos políticos utópicos e supostamente libertadores (socialistas,<br />
nacionalistas, pan-árabes etc.) nos países do M<strong>é</strong>dio Oriente.<br />
d) Relaciona-se tamb<strong>é</strong>m, com a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m perversa da economia do petróleo: os Estados Unidos<br />
(e, cobar<strong>de</strong>mente, a Europa) precisam <strong>de</strong> controlar as reservas e produção petrolíferas dos países<br />
árabe-islâmicos; as oligarquias <strong>de</strong>stes países enriquecem com o negócio mas não criam<br />
alternativas <strong>de</strong> progresso para os seus povos; e em certos casos <strong>é</strong> este mesmo negócio que serve<br />
para financiar formas encobertas <strong>de</strong> resistência e/ou violência, entre as quais o terrorismo.<br />
e) N<strong>um</strong> âmbito mais geral, o mo<strong>de</strong>lo neo-liberal <strong>de</strong> globalização impediu e impe<strong>de</strong> duas formas<br />
<strong>de</strong> globalização alternativa e <strong>de</strong>mocrática: a globalização da riqueza, por assim dizer (ou seja, a<br />
distribuição); e a globalização do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>mocrático, ou seja, formas institucionais <strong>de</strong> gestão da<br />
coisa global, que não <strong>um</strong>a ONU moribunda, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do dinheiro que (não) vem dos EUA,<br />
com direitos <strong>de</strong> veto que vêm da Guerra Fria e sem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar quer a natureza<br />
ditatorial dos regimes <strong>de</strong> muitos dos seus membros, quer a violência <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> outros.<br />
Neste quadro, a semana que passou não po<strong>de</strong> mais ser vista com a simplicida<strong>de</strong> – ou mesmo o<br />
simplismo – que todos <strong>de</strong>sejaríamos: o choque, a revolta, o horror, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> justiça c<strong>é</strong>lere, o<br />
impulso no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vez por todas quem tem e quem não tem razão.<br />
Infelizmente, não po<strong>de</strong> ser assim, porque o dia seguinte confronta-nos com realida<strong>de</strong>s que<br />
po<strong>de</strong>m vir a ser tão cru<strong>é</strong>is como a do atentado ou reprodutoras das causas políticas remotas e<br />
profundas acima enunciadas. Para <strong>um</strong>a realida<strong>de</strong> política <strong>de</strong>vem encontrar-se soluções políticas<br />
(a violência <strong>é</strong> a política no seu grau zero, o da ausência <strong>de</strong> negociação e da sua pr<strong>é</strong>-condição, a<br />
<strong>de</strong>mocracia).<br />
Aquilo a que assistimos esta semana foi a <strong>um</strong>a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong>, por parte dos<br />
responsáveis mundiais, em compreen<strong>de</strong>rem o que se passa no mundo. A criação <strong>de</strong> <strong>um</strong> estado<br />
<strong>de</strong> guerra virtual, por parte dos políticos e dos media americanos, <strong>é</strong> talvez mais <strong>um</strong> exemplo <strong>de</strong><br />
auto-fechamento, <strong>de</strong> <strong>um</strong> nacionalismo com laivos <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> povo eleito. A potência<br />
imperial <strong>de</strong> hoje <strong>é</strong> <strong>um</strong>a potência “paroquial”, cujo isolacionismo <strong>é</strong> alimentado pela ignorância<br />
da complexa realida<strong>de</strong> do mundo. A estrat<strong>é</strong>gia proposta via CNN <strong>é</strong> estranhamente velha, não<br />
indicando <strong>um</strong>a nova visão sobre <strong>um</strong> mundo (tragicamente) novo: <strong>é</strong> o recurso à <strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />
guerra, com a analogia com Pearl Harbor, a emissão <strong>de</strong> “war bonds” e a chamada dos<br />
reservistas; <strong>é</strong> o accionar do Tratado do Atlântico Norte, esse papel que <strong>de</strong>veria ter caducado<br />
com a Guerra Fria e ao qual a Europa obe<strong>de</strong>ce cobar<strong>de</strong>mente porque prefere ser <strong>de</strong>fendida pelos<br />
Americanos ao mesmo tempo que os <strong>de</strong>spreza; <strong>é</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que, tal como na Guerra do Golfo, <strong>é</strong><br />
possível resolver estes problemas com ataques cirúrgicos, sem baixas militares americanas e,<br />
supostamente, sem baixas civis no “inimigo”; <strong>é</strong> o <strong>de</strong>sprezo absoluto pela ONU ou pela<br />
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