Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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<strong>um</strong> lado, porque <strong>um</strong>a pessoa LGBT não apresenta sinais exteriores da sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> –<br />
codificações sociais do corpo que servem para estabelecer hierarquias -, ao contrário <strong>de</strong><br />
“mulher” ou “homem” ou do “negro” ou “estrangeiro”, ou at<strong>é</strong> da pessoa <strong>de</strong> classe “baixa”. Por<br />
outro, porque o homossexual ainda nasce em estruturas familiares que reproduzem a<br />
heteronormativida<strong>de</strong>. Assim, o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> si próprio, a assunção da sexualida<strong>de</strong><br />
(o “coming out”) e a criação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vida alternativa e <strong>de</strong> exigência <strong>de</strong> cidadania fazem-se<br />
necessariamente atrav<strong>é</strong>s da exposição a <strong>um</strong> colectivo ou comunida<strong>de</strong>. Isto <strong>é</strong>, em vez d<strong>um</strong>a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “natural”, nacional, <strong>é</strong>tnica ou outra que se mostra aí, no real, a pessoa LGBT<br />
constitui-se na criação da re<strong>de</strong> dos seus amigos e amantes, eventualmente nos lugares<br />
comunitários e, por fim e i<strong>de</strong>almente, na política do seu movimento social. Po<strong>de</strong>r ver os outros e<br />
tornar-se visível <strong>é</strong> <strong>um</strong> acto político <strong>de</strong> extrema importância. Daí que seja essa a principal<br />
questão do ataque à política LGBT: por parte dos reaccionários, mas tamb<strong>é</strong>m por parte da<br />
esquerda das “priorida<strong>de</strong>s” e, infelizmente, por parte dos LGBTs menos politizados (aqui<br />
entraríamos n<strong>um</strong>a questão interessante <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição: <strong>um</strong> LGBT não politizado <strong>é</strong> <strong>um</strong> LGBT ou<br />
<strong>um</strong> praticante <strong>de</strong> certos actos sexuais?).<br />
A natureza politizada da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> LGBT não <strong>é</strong> evi<strong>de</strong>nte para os próprios. Ou porque<br />
interpretam o seu coming out como fruto <strong>de</strong> <strong>um</strong> trabalho pessoal – em linha com a i<strong>de</strong>ologia<br />
individualista actual – ou porque recorrem a interpretações essencialistas à semelhança das que<br />
presi<strong>de</strong>m ao g<strong>é</strong>nero (ser gay porque se nasceu assim, por razões biológicas...). Mas sobretudo<br />
não <strong>é</strong> evi<strong>de</strong>nte para os segmentos políticos que têm a tradição <strong>de</strong> querer mudar a socieda<strong>de</strong> no<br />
sentido <strong>de</strong> maior igualda<strong>de</strong>. Refiro-me à esquerda.<br />
A tradição da esquerda <strong>é</strong> a promoção da igualda<strong>de</strong> e o combate às <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. A esquerda<br />
que conhecemos hoje, na sua diversida<strong>de</strong>, <strong>é</strong> a esquerda vinda do movimento operário e do<br />
sindicalismo, preocupada com a igualda<strong>de</strong> socio-económica e com a superação das contradições<br />
do capitalismo. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> interpretação <strong>é</strong> político-económico. Mas outras tradições <strong>de</strong><br />
esquerda existem. Uma mais difusa e antiga, que se pren<strong>de</strong> com o mo<strong>de</strong>lo liberal da revolução<br />
francesa e do il<strong>um</strong>inismo, centrada na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> cidadania e igualda<strong>de</strong> perante a lei. E a sua<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, mais americana, centrada na preocupação em articular igualda<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong> e<br />
focada nos chamados “interesses especiais”. A principal prisão da esquerda tem sido pensar que<br />
há <strong>um</strong>a contradição fundamental, a que está na base das relações entre capital e trabalho,<br />
esquecendo assim tanto a cidadania quanto os “interesses especiais”.<br />
Mas o mundo <strong>é</strong> hoje outro. O capitalismo pós-industrial introduziu outras coor<strong>de</strong>nadas: a<br />
terciarização, a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação, a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o, o individualismo, o<br />
hedonismo. A globalização aprofundou-se e acelerou-se. E a <strong>é</strong>poca das revoluções e do infeliz<br />
“socialismo real” terminou com <strong>um</strong> saldo longe <strong>de</strong> ser positivo. Estas transformações tiveram<br />
como resultado a esquerda colocar-se à <strong>de</strong>fesa, e o capitalismo avançar para a fase <strong>de</strong><br />
globalização neo-liberal. Há que dizê-lo claramente: a reestruturação da esquerda passa por<br />
novas formas <strong>de</strong> ler a questão do trabalho, e <strong>de</strong> ler a questão da relação entre capital e trabalho.<br />
E passa por introduzir na sua agenda questões que lhe eram estranhas: o feminismo, o ambiente,<br />
as questões LGBT entre outras. Não como “compagnons <strong>de</strong> route”, simpáticos mas secundários<br />
aliados <strong>de</strong> <strong>um</strong>a qualquer frente <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentes, mas como imprescindíveis parceiros iguais.<br />
Porque as contradições actuais são tamb<strong>é</strong>m as contradições entre os projectos <strong>de</strong> cidadania e<br />
diversida<strong>de</strong>, por <strong>um</strong> lado, e a manutenção <strong>de</strong> estruturas <strong>de</strong> classe, família, etnicida<strong>de</strong> e<br />
sexualida<strong>de</strong> antigas. Não se trata já <strong>de</strong> apenas combater a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e promover a igualda<strong>de</strong>.<br />
Trata-se tamb<strong>é</strong>m <strong>de</strong> combater a unicida<strong>de</strong> e promover a diversida<strong>de</strong>.<br />
O movimento LGBT sabe o que isto <strong>é</strong>. Para al<strong>é</strong>m do activismo, da pedagogia, da busca <strong>de</strong><br />
visibilida<strong>de</strong>, do diálogo, <strong>um</strong>a das suas formas <strong>de</strong> construir comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apoio e <strong>de</strong> promover<br />
a visibilida<strong>de</strong> tem sido a promoção <strong>de</strong> <strong>um</strong> mercado específico. Esse mercado corre o risco <strong>de</strong><br />
introduzir três perigosas clivagens: entre LGBTs ricos e cons<strong>um</strong>istas e pobres e excluídos; entre<br />
gays e l<strong>é</strong>sbicas, os primeiros usufruindo dos privil<strong>é</strong>gios masculinos, as segundas sofrendo a<br />
subordinação feminina; e <strong>de</strong> promover <strong>um</strong>a imagem aceitável mas igualmente estereotipada do<br />
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