13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

É óbvio que, como pessoa nascida em Portugal, criada n<strong>um</strong>a família que fala português e<br />

vivendo <strong>um</strong> quotidiano em Lisboa, fui incorporando hábitos, formas <strong>de</strong> fazer e ver o mundo,<br />

que tornam este sítio mais fácil para mim. O contacto com pessoas e lugares cria afectos na<br />

memória. É isso que faz com que se possa sentir “sauda<strong>de</strong>s”, ou sentir alívio quando se chega ao<br />

lugar <strong>de</strong> origem. Sabemos os truques, não temos que nos esforçar tanto. Mas não po<strong>de</strong>mos<br />

esquecer que essa vivência e esses hábitos criam tamb<strong>é</strong>m tra<strong>um</strong>as e mal-estares. E que muitos<br />

<strong>de</strong>sses mal-estares têm a ver com <strong>de</strong>feitos no funcionamento das coisas n<strong>um</strong> <strong>de</strong>terminado tempo<br />

e lugar. É minha convicção que, quando se percebe que esta coisa da i<strong>de</strong>ntificação com <strong>um</strong><br />

lugar <strong>é</strong> <strong>um</strong> misto <strong>de</strong> afecto, <strong>de</strong>safecto e verificação dos problemas, não se po<strong>de</strong> ser mais, sequer,<br />

“patriota”. Nem no sentido light. A única coisa que há que ser <strong>é</strong> cidadão: crítico, actuante, e<br />

livre. Livre para, inclusive, dizer que não se gosta do país.<br />

Escusado será dizer que me metem nojo os racistas e os xenófobos. Que me irritam e fazem rir<br />

os nacionalistas. Mas quem me preocupa mais são os patriotas, porque essa <strong>é</strong> a versão que mais<br />

encontro nos que me ro<strong>de</strong>iam. Pessoas com obrigação <strong>de</strong> terem sentido crítico. De perceberem<br />

como muitas das categorias com que funcionam são <strong>de</strong> senso com<strong>um</strong>, e não reflectidas. De<br />

como a naturalização que fazem da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>é</strong> <strong>um</strong> empecilho para a sua autonomia<br />

responsável (a cidadania) e para a mudança nas instituições (a política).<br />

O rol das parvoíces patrióticas portuguesas <strong>é</strong> extenso. O nível mais ridículo <strong>é</strong> o do consenso<br />

criado em torno das virtu<strong>de</strong>zinhas e vantagenzinhas <strong>de</strong> viver aqui. Os mitos mais recorrentes são<br />

o clima e as praias, a comida e qualquer coisa que se po<strong>de</strong>ria res<strong>um</strong>ir n<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia autogratificante<br />

<strong>de</strong> “latinida<strong>de</strong>”. Posso contrapor esses mitos sem qualquer esforço: o Inverno<br />

lisboeta <strong>é</strong> das coisas mais <strong>de</strong>sagradáveis que existem, a comida nos restaurantes parece centrarse<br />

nas batatas fritas e no arroz e os supostos à-vonta<strong>de</strong>, simpatia e alegria são constantemente<br />

contrapostos pelo controlo social, a vergonha, o sentido do ridículo, as <strong>de</strong>pressões e a violência.<br />

Aos estereótipos positivos dos portugueses contraponho este: <strong>um</strong>a cena <strong>de</strong> rua, on<strong>de</strong> <strong>um</strong> homem<br />

oferece pancada a outro, enquanto <strong>um</strong>a rapariga <strong>de</strong> 20 anos agarrada à sua mala (<strong>de</strong> senhora...)<br />

comenta o facto com pessoas <strong>de</strong> 60 anos encharcadas em anti-<strong>de</strong>pressivos e vestidas à moda da<br />

Albânia nos anos setenta – isto at<strong>é</strong> serem afastadas por <strong>um</strong> BMW que quer estacionar em cima<br />

do passeio.<br />

O que para mim conta – como cidadão, ser h<strong>um</strong>ano que estará neste planeta por <strong>um</strong> período<br />

limitado <strong>de</strong> tempo – <strong>é</strong> a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Pouco me importa se as pessoas são mais ou menos<br />

simpáticas. Se o país tem mais ou menos glórias no passado ou no presente. Se os turistas<br />

gostam ou não gostam. O que me interessa são coisas muito simples e muito práticas: em<br />

primeiro lugar, acho intolerável viver n<strong>um</strong> sítio com pobreza, sem redistribuição <strong>de</strong> riqueza,<br />

havendo (ou tendo havido...) todas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inverter a situação; em segundo lugar,<br />

acho chocante e perigoso (para a mente em geral e para o corpo em particular – basta andar na<br />

estrada) viver n<strong>um</strong> sítio sem educação e cidadania, porque nunca se apostou na educação; em<br />

terceiro lugar, <strong>é</strong> penoso viver n<strong>um</strong> sítio on<strong>de</strong> os serviços não funcionam e em que as pessoas,<br />

retorquindo o <strong>de</strong>sprezo a que são votadas, <strong>de</strong>sprezam os outros, os espaços públicos e as<br />

próprias instituições (permanecendo, <strong>é</strong> claro, patrióticas!).<br />

Lisboa, on<strong>de</strong> vivo, <strong>é</strong> provavelmente <strong>um</strong> bom exemplo disto tudo. Vive e sobrevive (os seus<br />

habitantes e os turistas que nela injectam dinheiro) do mito da sua beleza panorâmica e do seu<br />

charme. Ora, a sua beleza panorâmica reduz-se a uns cantinhos <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se espreita o rio,<br />

normalmente uns miradouros. O charme baseia-se no que realisticamente só se po<strong>de</strong> chamar<br />

<strong>de</strong>cadência, quando não mis<strong>é</strong>ria (algu<strong>é</strong>m quer viver <strong>de</strong> facto em Alfama, a não ser que gaste<br />

milhares <strong>de</strong> contos na reconstrução da casa? E mesmo assim, como aguentaria a mis<strong>é</strong>ria à porta<br />

<strong>de</strong> casa?). O quotidiano lisboeta, esse, <strong>é</strong> feito <strong>de</strong> <strong>um</strong>a exposição constante à feiura <strong>de</strong> ruas e<br />

pr<strong>é</strong>dios, à porcaria, ao trânsito caótico e à má educação das pessoas, complementada com o<br />

<strong>de</strong>sprezo e ineficácia dos serviços e instituições públicas, nem sequer superadas pelas privadas,<br />

on<strong>de</strong> o grau <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços e dos clientes se aproxima do zero. É aliás<br />

135

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!