Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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sentido, as cida<strong>de</strong>s são sempre excepções, pois são micro-universos <strong>de</strong> experiência social e<br />
cultural. Estão quase sempre separadas dos países que as envolvem.<br />
Nova Iorque está para a Costa Leste dos Estados Unidos como São Francisco está para a Costa<br />
Oeste. São ambas cida<strong>de</strong>s-experiência. Nova Iorque <strong>é</strong>-o para <strong>um</strong>a região da Am<strong>é</strong>rica “antiga”,<br />
marcada pelo puritanismo e pela guerra civil.. Em Nova Iorque refugiam-se literalmente as<br />
pessoas que não querem passar a vida n<strong>um</strong>a eterna celebração do dia <strong>de</strong> Acção <strong>de</strong> Graças,<br />
temperada por repentes neuróticos <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>ismo.<br />
São Francisco <strong>é</strong>-o, <strong>de</strong> certo modo, para <strong>um</strong>a região (a Califórnia) que foi ela mesma, durante<br />
muito tempo, <strong>um</strong> ponto <strong>de</strong> miragem: a miragem do ouro, a miragem da terra, a miragem da<br />
ascensão social rápida, do estrelato, das formas <strong>de</strong> vida alternativas. Só que cedo a Califórnia<br />
criou os seus monstros. Isso <strong>é</strong> visível em Los Angeles, <strong>um</strong> aglomerado <strong>de</strong> horrores ecológicos e<br />
urbanos. Isso <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m visível n<strong>um</strong>a certa mentalida<strong>de</strong> que, <strong>de</strong> tão preocupada com a correcção<br />
política, criou <strong>um</strong> novo puritanismo e, ao mesmo tempo, <strong>um</strong> vazio <strong>de</strong> sentido na maneira como<br />
tudo se utiliza para criar novida<strong>de</strong>, sem crit<strong>é</strong>rio, sem calma, sem parcimónia na escolha.<br />
É difícil dizer porque ou como São Francisco escapou a isto. Estando eu aqui, creio que tudo<br />
começa na paisagem, n<strong>um</strong> sentido do lugar que a baía, os seus istmos, angras e promontórios<br />
sobre o mar criam. É como se tiv<strong>é</strong>ssemos criado <strong>um</strong>a civilização a partir do Guincho. Mas creio<br />
que a principal razão <strong>é</strong> outra: São Francisco não foi o lugar da indústria cinematográfica, nem o<br />
lugar da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> enriquecer e mostrar que se enriqueceu. São Francisco foi antes<br />
o lugar do movimento “beat”, do movimento “hippie”, do movimento da contracultura, do<br />
movimento “gay” e das influências “new age”. Todas essas influências se interpenetram aqui,<br />
n<strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> com <strong>um</strong>a história temporalmente curta. Mas civilizacionalmente rica.. Aqui temos<br />
o melhor da Europa (bairros, caf<strong>é</strong>s, zonas urbanas para fazer compras, <strong>um</strong>a escala dominável,<br />
<strong>um</strong>a cultura <strong>de</strong> passeios ao ar livre, parques e transportes públicos), sem termos o pior (o<br />
conservadorismo, o cinzentismo, a cor “beige”, os uniformes). E temos o melhor da Am<strong>é</strong>rica (a<br />
experimentação, a liberda<strong>de</strong>, a abertura a novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s), sem termos o pior (o puritanismo,<br />
a hipocrisia, o provincianismo).<br />
Sinto-me tão bem aqui que aconselho toda a gente a vir para cá. Como o fizeram os chineses,<br />
que aqui têm a sua maior comunida<strong>de</strong> fora da China. Como os “gays”, que aqui fizeram bairros,<br />
cultura, história e <strong>um</strong>a presença na cida<strong>de</strong>. Aqui, do outro lado do Novo Mundo, começa o<br />
Oceano Pacífico, começa o futuro, o mundo europeu dá <strong>um</strong>a volta sobre si mesmo e começa <strong>de</strong><br />
fresco, <strong>de</strong>itando fora at<strong>é</strong> mesmo a experiência americana. Não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me sentir<br />
místico: isto <strong>é</strong> mesmo <strong>um</strong>a república… franciscana.<br />
Um quarto sem vista<br />
(Público, 01.12.96)<br />
A universida<strong>de</strong> <strong>é</strong> <strong>um</strong>a estranha instituição. Tradicionalmente elitista e fazedora <strong>de</strong> elites,<br />
conseguiu criar entre o com<strong>um</strong> dos mortais a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ser <strong>um</strong>a instituição estável e inabalável,<br />
mesmo contra a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inúmeras crises. Hoje em dia – e sobretudo duas d<strong>é</strong>cadas <strong>de</strong>pois do<br />
estabelecimento da <strong>de</strong>mocracia em Portugal – já só os ing<strong>é</strong>nuos po<strong>de</strong>m continuar iludidos. A<br />
universida<strong>de</strong> tornou-se n<strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> navio <strong>de</strong> refugiados, on<strong>de</strong> falta espaço e água,<br />
navegando entre águas territoriais e sem que nenh<strong>um</strong> país lhe queira dar porto <strong>de</strong> abrigo.<br />
Mesmo n<strong>um</strong> país como o nosso, on<strong>de</strong> a percentagem <strong>de</strong> licenciados <strong>é</strong> ridícula, as contradições<br />
da universida<strong>de</strong> são patentes.<br />
Deixo <strong>de</strong> lado aquelas gran<strong>de</strong>s questões <strong>de</strong> fundo sobre a natureza, função e <strong>de</strong>sígnio da<br />
universida<strong>de</strong>. Não cabem n<strong>um</strong>a crónica e conduzem a discursos abstractos sobre a “socieda<strong>de</strong>”,<br />
dos mais libertários aos mais reaccionários. Interessa-me mais <strong>um</strong>a breve radiografia dos<br />
interesses conflituantes que diariamente se sentem n<strong>um</strong>a universida<strong>de</strong>. <strong>Este</strong>s conflitos – ou, se<br />
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