Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Descolonizar o futuro<br />
(Público, 17.03.96)<br />
Um colega norueguês enviou-me <strong>um</strong>a proposta <strong>de</strong> artigo (para apresentar n<strong>um</strong> congresso) que<br />
me fez pensar. Devo dizer que <strong>é</strong> raríssimo hoje em dia surgirem propostas <strong>de</strong> artigos que façam<br />
pensar. Justamente por causa da lógica mecanicista do “publicar ou morrer” que impera em<br />
vastos sectores da vida acad<strong>é</strong>mica. Questão que, aliás, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter as suas ligações com o<br />
que o meu colega propõe.<br />
Ele começa por afirmar que o Estado-providência escandinavo <strong>é</strong> <strong>um</strong> “regime <strong>de</strong> trabalho”.<br />
Gosto da expressão. É-o porque <strong>de</strong>fine os seus súbditos por relação a <strong>um</strong>a moralida<strong>de</strong> do tempo<br />
e do trabalho: o progresso pessoal linear atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong>a carreira, educacional ou laboral. É por<br />
isso, diz ele, que os <strong>de</strong>sempregados são vistos pela moral dominante como párias que não<br />
partilham a mesma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> tempo, do seu uso e do seu fim último. Não <strong>é</strong> nada difícil aplicar o<br />
mesmo a Portugal, com a (enorme) ressalva <strong>de</strong> não termos <strong>de</strong>sempregados por opção. Tamb<strong>é</strong>m<br />
por cá, o tempo presente <strong>é</strong> inexistente para a maior parte <strong>de</strong> nós, porque <strong>é</strong> sempre vivido em<br />
função do futuro. Daquilo “para que” se está a trabalhar. Quando contamos a algu<strong>é</strong>m “o que<br />
estamos a fazer” referimo-nos quase sempre a projectos e a concretizações futuras. Ou então<br />
falamos do que já concretizámos no passado, remoto ou recente, <strong>de</strong> modo a nos narrarmos a nós<br />
próprios como personagens <strong>de</strong> <strong>um</strong>a história com princípio, meio, fim e ... moral.<br />
Vivemos n<strong>um</strong>a <strong>é</strong>poca em que o presente <strong>é</strong> esvaziado. Talvez por isso a publicida<strong>de</strong> e o<br />
cons<strong>um</strong>ismo apelem tanto à satisfação dos <strong>de</strong>sejos imediatos, sabendo que estão a acicatar <strong>um</strong>a<br />
dos nossos mais ocultos <strong>de</strong>sejos. No entanto, a ironia está no facto <strong>de</strong> a satisfação <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sejos<br />
<strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o e prazer acabar por ter <strong>de</strong> ser encaixada n<strong>um</strong>a “carreira <strong>de</strong> vida” linear e<br />
c<strong>um</strong>ulativa. Caso contrário, como conseguiríamos comprar o carro que nos pe<strong>de</strong> que “sejamos<br />
realistas e exijamos o impossível” – essa frase libertária <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 68 agora canibalizada pela<br />
indústria automóvel francesa? Por isso, quando alguns moralistas nos dizem que hoje em dia<br />
somos egoístas e narcisistas, <strong>de</strong>sconfiemos. Po<strong>de</strong> bem ser a moralida<strong>de</strong> do tempo linear a tapar<br />
as brechas que se vão abrindo aqui e ali.<br />
O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> tempo que usamos apresenta-se como racional, quando, na realida<strong>de</strong>, <strong>é</strong> quase<br />
mágico. Quando planeamos <strong>um</strong>a educação, <strong>um</strong>a carreira ou simplesmente as tarefas que temos<br />
para fazer para o próximo mês, ano ou <strong>de</strong>c<strong>é</strong>nio, estamos a conceber coisas cujas consequências<br />
não adivinhamos. Acreditamos que vamos chegar a chefes <strong>de</strong> divisão ou a ministros, e quando<br />
“trabalhamos para isso” estamos como que a fazer <strong>um</strong>a penitência para pedir <strong>um</strong>a graça divina.<br />
Um dos mal-estares da nossa civilização resi<strong>de</strong> nesta moralida<strong>de</strong> do tempo. Por isso nos<br />
preocupamos tanto em conhecer noções <strong>de</strong> tempo diferentes ou imaginar noções alternativas.<br />
Fascinamo-nos com o tempo cíclico dos primitivos e das socieda<strong>de</strong>s antigas. Ou invejamos as<br />
pessoas que dizem “viver o momento”. Infelizmente, nenh<strong>um</strong>a das duas resulta. O tempo cíclico<br />
“já era”, se <strong>é</strong> que alg<strong>um</strong>a vez chegou a ser – po<strong>de</strong> muito bem ter sido <strong>um</strong>a construção<br />
melancólica dos oci<strong>de</strong>ntais face aos “selvagens”. Quanto ao “viver o momento”, soa sempre a<br />
falso. Pelo menos, <strong>é</strong> <strong>um</strong>a expressão que sempre ouvi a gente com <strong>um</strong> ar muito nervoso, em<br />
noitadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scompressão (na manhã seguinte regressam aos carris do tempo “normal”).<br />
Alguns intelectuais dirão que isto não tem nada <strong>de</strong> novo, que <strong>é</strong> <strong>um</strong>a das estafadas características<br />
da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> – “a colonização do futuro”. A expressão, cunhada, segundo creio, pelo<br />
sociólogo Anthony Gid<strong>de</strong>ns, <strong>é</strong> certeira. “Colonização” faz pensar na imposição <strong>de</strong> regras que<br />
são alheias ao futuro, <strong>um</strong>a vez que ele ainda não foi vivido. Tal como se impunham códigos<br />
europeus a socieda<strong>de</strong>s tribais africanas para quem aqueles <strong>de</strong>viam parecer tão esot<strong>é</strong>ricos como a<br />
bula <strong>de</strong> <strong>um</strong> medicamento. Pessoas <strong>de</strong> bom-senso dirão que não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> “planear”, se<br />
se quiser <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> melhor ou <strong>um</strong> futuro para os filhos. Tamb<strong>é</strong>m têm razão.<br />
17