Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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dificil <strong>de</strong> sacudir que nos atinge quando se atravessa <strong>um</strong> espaço imenso, com <strong>um</strong> c<strong>é</strong>u que parece<br />
maior, on<strong>de</strong>, no entanto, se vão repetindo as mesmas coisas, impessoais e prontas a usar, como o<br />
Dunkin Donuts on<strong>de</strong> escrevo estas linhas. De certo modo, regressei a casa e sinto que já não<br />
moro aqui. Deve ser assim que se envelhece.<br />
Ainda não disse: a conversa dos passageiros tinha começado por causa do excremento <strong>de</strong> cão<br />
que <strong>um</strong>a senhora tinha pisado na relva. O pedaço <strong>de</strong> excremento com certeza seguiu viagem<br />
para Quebeque, capital do dito. A senhora tinha estado em Portugal e não parava <strong>de</strong> falar do<br />
fascínio que sentira com os tanques <strong>de</strong> lavar roupa (mais tar<strong>de</strong> perguntou-me se as mulheres<br />
ainda carregam pesos na cabeça. Disse-lhe que sim, mas não expliquei a metáfora). Ela visitava<br />
Quebeque pela mesma razão que os outros americanos: ter a sensação <strong>de</strong> História, <strong>de</strong> presença<br />
europeia – <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>. Por <strong>um</strong>a qualquer razão misteriosa, os norte-americanos sentem isto<br />
apenas com o que <strong>é</strong> europeu e não, por exemplo, com o que <strong>é</strong> índio. Uma resposta sensata seria<br />
dizer que não se po<strong>de</strong> visitar o que se exterminou. É caso para dizer que por baixo <strong>de</strong> cada<br />
cemit<strong>é</strong>rio <strong>de</strong> carros está <strong>um</strong> cemit<strong>é</strong>rio índio. Os canadianos francófonos, por sua vez, fizeram da<br />
sua capital <strong>um</strong> símbolo da ligação à França. Mas o seu nacionalismo <strong>é</strong> no mínimo estranho.<br />
Vivem n<strong>um</strong> dos países mais ricos, seguros e bonitos do mundo, do qual não passa pela cabeça<br />
<strong>de</strong> ningu<strong>é</strong>m separar-se. E a França <strong>de</strong> que falam foi a sua potência colonial. Quando a<br />
francofilia vem ao <strong>de</strong> cima, <strong>é</strong> no sentido <strong>de</strong> dizer que preferiam ter continuado colónia da França<br />
a fazerem parte <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fe<strong>de</strong>ração simbolicamente dirigida pela rainha <strong>de</strong> Inglaterra. Consigo<br />
imaginar 400 causas mais interessantes por que lutar.<br />
Mas <strong>é</strong> assim a minha segunda pátria, as Am<strong>é</strong>ricas: a terra da utopia perdida. Por isso <strong>de</strong>z anos<br />
não alteraram esta melancolia outonal, este gostar e <strong>de</strong>testar, que sempre sinto neste lado do<br />
Atlântico. Mas <strong>um</strong>a coisa <strong>é</strong> certa: já não moro aqui.<br />
A língua on-line<br />
(Público, 13.10.96)<br />
O que se segue <strong>é</strong> a transcrição d<strong>um</strong> texto d<strong>um</strong>a revista distribuída pela Telepac. Os itálicos,<br />
comentário e cortes são meus: “O ‘VDOLive’ está disponível para várias plataformas e <strong>é</strong><br />
compatível com os principais ‘browsers’. Funciona quase tão bem n<strong>um</strong>a ligação ‘dial-up’ a 14<br />
400 bps como por RDIS. Isto, (sic) porque se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a tecnologia revolucionária, baseada<br />
em ‘buffering’ <strong>de</strong> áudio e ví<strong>de</strong>o, que permite <strong>um</strong>a estabilida<strong>de</strong> bastante gran<strong>de</strong> à transmissão. Se<br />
não acredita, experimente ligar para a página da VDO em (…), copie o ‘software’ <strong>de</strong> leitura (…)<br />
e veja como os empresários <strong>de</strong> todo o mundo vão começando a explorar o potencial do ví<strong>de</strong>o<br />
‘online’.”<br />
Cinco por cento das palavras <strong>de</strong>ste trecho são inglesas: live, dial-up, buffering, software, online.<br />
Longe <strong>de</strong> mim ser purista em relação à língua. E tamb<strong>é</strong>m há que compreen<strong>de</strong>r o carácter<br />
universal que o inglês ass<strong>um</strong>e quando se trata <strong>de</strong> informática ou <strong>de</strong> assuntos relacionados com a<br />
Internet (cá está…). Eu próprio fiquei em estado <strong>de</strong> choque quando comecei recentemente a<br />
usar <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> computador com as instruções em português. A minha (e <strong>de</strong> quase toda a<br />
gente) aprendizagem informática foi feita em inglês: palavras como “guardar”, “anular” e outras<br />
pareceram-me chinês ao princípio, quando comparadas com “save” ou “undo”. Estas já se<br />
haviam tornado automáticas, <strong>de</strong>sprovidas inclusive da sua conotação anglo-saxónica (por isso<br />
muitos utilizadores as pronunciam em português, mesmo quando sabem inglês…).<br />
O problema está em que a língua per<strong>de</strong> <strong>um</strong>a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se enriquecer quando não<br />
procuramos encontrar expressões portuguesas equivalentes. Não custa nada. E quem as apren<strong>de</strong><br />
não <strong>de</strong>sapren<strong>de</strong> as inglesas, ficando duplamente conhecedor. Noutros países tentou-se resolver o<br />
problema <strong>de</strong> várias maneiras. Os franceses e os espanhóis têm tendência para procurar traduzir<br />
as expressões e utilizá-las exclusivamente. Ficam sem saber os equivalentes ingleses, pelo que<br />
se lhes torna difícil comunicar globalmente com outras pessoas. O chauvinismo e o<br />
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