Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
os EUA, o excessivo po<strong>de</strong>r perverteu a <strong>de</strong>mocracia, reservando-a para cons<strong>um</strong>o interno e<br />
<strong>de</strong>sprezando-a no plano internacional. Os primeiros têm <strong>de</strong>masiado do que <strong>é</strong> mau, os segundos<br />
<strong>de</strong>masiado do que <strong>é</strong> bom.<br />
Agora que nos livrámos do peso da utopia e da fantasia catastrófica da sua suposta realização no<br />
“socialismo real”, o problema continua a ser a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> global: po<strong>de</strong>rio norte-americano <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> lado, crescente sub<strong>de</strong>senvolvimento do outro. Não <strong>é</strong> certamente com a perpetuação <strong>de</strong>ste<br />
estado <strong>de</strong> coisas que alg<strong>um</strong>a vez se vai resolver o problema – incluindo o monstro difuso e<br />
assustador do terrorismo <strong>de</strong> base fundamentalista.<br />
Sem título<br />
(Webpage, 5.11.01)<br />
Todas as tar<strong>de</strong>s dá-se o acontecimento fatal: do pr<strong>é</strong>dio em frente chega a música – sempre a<br />
mesma música – com a intensida<strong>de</strong> sonora <strong>de</strong> <strong>um</strong>a discoteca. Mas no pr<strong>é</strong>dio em frente não há<br />
nenh<strong>um</strong>a discoteca. Na rua não há nenh<strong>um</strong>a discoteca. Falo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a rua normal da Lisboa<br />
antiga, <strong>de</strong>ssas on<strong>de</strong> se misturam várias classes sociais e estilos <strong>de</strong> vida, mas on<strong>de</strong> predomina a<br />
vida “<strong>de</strong> rua” e a “cultura popular”. Sai-se para a rua por duas razões fundamentais: porque as<br />
casa são pequenas, escuras e <strong>de</strong>sconfortáveis; e porque as relações dom<strong>é</strong>sticas não primam pela<br />
concórdia. Os mais velhos procuram nos vizinhos os aliados que não têm em casa ou a<br />
prestação <strong>de</strong> favores necessários a prosseguir a vida, quando nem os empregos nem a segurança<br />
social garantem a satisfação <strong>de</strong> todas as necessida<strong>de</strong>s. Os mais jovens, por sua vez, procuram os<br />
grupos <strong>de</strong> pares com quem possam passar o (muito) tempo que sobra, <strong>um</strong>a vez rendidos ao<br />
insucesso escolar ou ao <strong>de</strong>semprego. Ou, então, usam o vol<strong>um</strong>e sonoro como forma <strong>de</strong><br />
afirmação....<br />
Um dia, você irrita-se <strong>de</strong> vez. Não consegue trabalhar com o barulho. Não consegue <strong>de</strong>scansar.<br />
Não consegue sequer ouvir a sua música. E dirige-se à janela da casa <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem aquela<br />
música. Sempre a mesma música. E explica ao rapaz: você tem que ter respeito pelos outros,<br />
não po<strong>de</strong> impor a sua música, muito menos com o vol<strong>um</strong>e do som tão alto; mesmo não sendo <strong>de</strong><br />
noite, perturba; e a solução passa por baixar o vol<strong>um</strong>e <strong>um</strong> pouco, ou fechar a janela, ou colocar<br />
a aparelhagem noutra parte da casa. Espantado, você assiste ao rapaz a “passar-se”, gritando <strong>de</strong><br />
modo agressivo e sem permitir o mínimo diálogo. A lista dos arg<strong>um</strong>entos <strong>de</strong>le inclui: “faço o<br />
que bem entendo em minha casa”; “vivo nesta rua há mais tempo do que você”; “po<strong>de</strong> at<strong>é</strong><br />
chamar a polícia se quiser, porque eu não vou fazer nada”.<br />
Regressado a casa, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>vidamente barricado <strong>de</strong> modo a obter algo <strong>de</strong> remotamente<br />
comparável ao silêncio, você procura explicações psicológicas e sociológicas para aquela<br />
atitu<strong>de</strong>. Você sabe que o rapaz <strong>é</strong> filho <strong>de</strong> <strong>um</strong>a senhora que já foi mulher-a-dias em sua casa;<br />
você sabe que ele pertence a <strong>um</strong>a família pobre; você sabe que o irmão do rapaz <strong>é</strong> <strong>um</strong> dos<br />
icónicos toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da rua; e você sabe que o rapaz <strong>é</strong> negro. Os ingredientes apontam<br />
todos no sentido <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong> baixa-estima, <strong>de</strong> inveja e revolta, <strong>de</strong> reacção a mil e <strong>um</strong>a<br />
injustiças sentidas no quotidiano. Não havendo nada a fazer, e com tanta explicação sociológica,<br />
só lhe resta mesmo começar a pensar em mudar-se para paragens mais burguesas e anónimas.<br />
Eis senão quando acontece algo que lhe <strong>de</strong>strói o edifício explicativo. Você trabalha n<strong>um</strong>a<br />
universida<strong>de</strong>, supostamente ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> pessoas letradas e cultas, usufruindo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a profissão<br />
interessante. Mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há uns tempos para cá, <strong>um</strong> colega seu <strong>de</strong>dica-se a persegui-lo, a si e a<br />
outros, n<strong>um</strong> exercício <strong>de</strong> psicose legalista: procura nos mais ínfimos pormenores da vida<br />
acad<strong>é</strong>mica razões para apresentar queixas, para invocar leis e articulados, para ameaçar<br />
processos, para impugnar <strong>de</strong>cisões e concursos e, em última instância, para levantar suspeitas e<br />
<strong>de</strong>struir reputações. A estrat<strong>é</strong>gia <strong>é</strong> clara: <strong>de</strong>struir toda e qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os outros<br />
verem o seu m<strong>é</strong>rito reconhecido ou <strong>de</strong> avançarem na carreira. Neste caso você já não consegue<br />
98