13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Como era possível eu usar aquela expressão hedionda? E logo perante eles, e ali? Deveria ter<br />

vergonha na cara, etc. Não <strong>de</strong>morei muito a dar-lhes razão. A expressão “a questão judaica” –<br />

usada at<strong>é</strong> à náusea na Alemanha, nazi e pr<strong>é</strong>-nazi – implica que existe <strong>um</strong> problema e, <strong>de</strong> certo<br />

modo, que esse problema <strong>é</strong> qualquer coisa da essência daqueles que são nomeados – neste caso<br />

os ju<strong>de</strong>us. Originalmente a expressão era utilizada para questionar o problema nacional<br />

germânico: po<strong>de</strong>rá <strong>um</strong> ju<strong>de</strong>u ser alemão? Tamb<strong>é</strong>m alemão? Alemão, apesar <strong>de</strong> tudo? Ou<br />

primeiro ju<strong>de</strong>u e <strong>de</strong>pois alemão? E por aí fora. A expressão e a questão que ela colocava foi<br />

levada at<strong>é</strong> às últimas consequências: os campos <strong>de</strong> extermínio.<br />

Hoje <strong>é</strong> para mim claro como água que, quando algu<strong>é</strong>m coloca a “questão judaica” ou outra<br />

qualquer, está, antes do mais, a colocar a “sua” própria questão. Isto <strong>é</strong>, a questão judaica só <strong>é</strong><br />

questão judaica para quem tem <strong>um</strong> problema com os ju<strong>de</strong>us. O resto seria culpar a vítima, <strong>um</strong><br />

<strong>de</strong>sporto infelizmente bastante popular. Em s<strong>um</strong>a: a questão judaica era, na realida<strong>de</strong>, a questão<br />

alemã. Um problema <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição nacional.<br />

Começámos, entretanto, o ano 2000, com a questão austríaca. Ela <strong>é</strong>, <strong>de</strong> facto, <strong>um</strong>a questão<br />

europeia. Desiludam-se aqueles que pensam que os austríacos são nazis ou que têm <strong>um</strong><br />

problema psiquiátrico qualquer. É certo que a Áustria tem características peculiares: não fez<br />

<strong>de</strong>snazificação, não encetou <strong>um</strong> processo <strong>de</strong> auto-crítica cultural e histórica, e tem vivido com<br />

<strong>um</strong> pacto <strong>de</strong> regime que garante o po<strong>de</strong>r para <strong>um</strong> bloco central que distribui entre si empregos e<br />

benesses. Tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> certo que, na fronteira com o leste, a Áustria tem recebido mais imigrantes<br />

do que muitos outros países – <strong>um</strong>a situação que <strong>é</strong> potencialmente explosiva.<br />

Mas porque transcen<strong>de</strong> esta questão a Áustria? Porque ela <strong>é</strong> o sintoma <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s europeias<br />

gerais. A Europa <strong>é</strong> o continente que inventou o nacionalismo. Que inventou a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>é</strong>tnica<br />

nacional com base na unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> língua, território e, at<strong>é</strong>, “raça”. A Europa sangrou como<br />

ningu<strong>é</strong>m por causa <strong>de</strong>stas questões. Veio a União Europeia tentar sanar estes diferendos<br />

tornando as partes inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes economicamente. Garantiu altos níveis <strong>de</strong> vida e cons<strong>um</strong>o,<br />

graças, em parte, à ac<strong>um</strong>ulação <strong>de</strong> capital obtida com os projectos coloniais. No meio <strong>de</strong>ste<br />

sonho – a “Música no Coração” acontece na Áustria… – ningu<strong>é</strong>m podia imaginar que o resto do<br />

mundo começaria a cobrar a factura. Pior: <strong>de</strong> repente o resto do mundo já não <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa lá<br />

longe, mas o vizinho do lado, cuja cortina <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong>rreteu por si mesma. Cada <strong>um</strong> reage com<br />

aquilo que tem ou sabe. E o que muitos Austríacos têm ou sabem <strong>é</strong> <strong>um</strong> passado <strong>de</strong> xenofobia.<br />

Por tudo isto, a presidência da UE fez o que tinha a fazer. Os limites <strong>de</strong> sobrevivência da<br />

<strong>de</strong>mocracia jogam-se ali, na Áustria, hoje. E o limite <strong>é</strong> quando se tem que dizer que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

haver livre escolha <strong>de</strong>mocrática quando se escolhe o que vai contra ela. Que Guterres aproveite<br />

o processo para benefício da sua projecção internacional, <strong>é</strong> <strong>um</strong> preço menor, porque a questão<br />

austríaca <strong>é</strong>, afinal, a questão europeia.<br />

O pesa<strong>de</strong>lo<br />

(“Jornal Torrejano”, 02.03.00)<br />

Por vezes a vertigem urbana – telefones, trânsito, ruído, poluição, gente, má-criação, conflito,<br />

espera, stress, ansieda<strong>de</strong>, superficialida<strong>de</strong> e cacofonia – provoca <strong>um</strong> tal cansaço que chego a<br />

casa <strong>de</strong>rrotado e caio n<strong>um</strong> sono fora <strong>de</strong> horas, tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para ser sesta, cedo <strong>de</strong>mais para ir<br />

para a cama. Outro dia <strong>de</strong>i por mim <strong>de</strong>itado no sofá, acordando às oito, com o som <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

telejornal começando na televisão. Demorei a chegar à realida<strong>de</strong>. Tudo o que ouvia me parecia<br />

absurdo. Posso dar alguns exemplos?<br />

Primeiro: a atenção dada ao mundo do futebol. Não se trata <strong>de</strong> jornalismo <strong>de</strong>sportivo, porque<br />

aquilo <strong>de</strong> que se fala não <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sporto, mas só <strong>de</strong> futebol. E a coisa não fica por aqui: aquilo <strong>de</strong><br />

que se fala <strong>é</strong> da política do futebol – dirigentes, clubes, tráfico <strong>de</strong> influências e pol<strong>é</strong>micas entre<br />

pessoas que nem jogam futebol (o que po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong> nobre motivo <strong>de</strong> admiração) nem<br />

69

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!