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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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pertencer) ao que quiserem, sem <strong>de</strong>finições impostas. Se calhar <strong>é</strong> isto que está em vias <strong>de</strong><br />

extinção. Se calhar <strong>é</strong> isto que <strong>é</strong> preciso ajudar a sobreviver.<br />

Um <strong>de</strong>safio final: pense agora o leitor como isto se aplica a Portugal...<br />

Elogio da Ilha<br />

(Público, 23.06.96)<br />

No bairro on<strong>de</strong> moro há <strong>um</strong>a ilha. Não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a “ilha” no sentido estrito, nem no sentido<br />

tripeiro do termo – aquilo que em Lisboa se chama <strong>um</strong>a “vila”. Trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ilha metafórica.<br />

É <strong>um</strong> triângulo <strong>de</strong> calçada portuguesa ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> ruas asfaltadas por todos os lados. No espaço<br />

exíguo da ilha encontram-se todos os equipamentos possíveis e imaginários. Se a memória não<br />

me falha, os equipamentos possíveis – ou reais – são os seguintes: <strong>um</strong> abrigo para a paragem <strong>de</strong><br />

autocarro; <strong>um</strong>a paragem <strong>de</strong> el<strong>é</strong>ctrico (sim, ainda há!); <strong>um</strong>a cabine telefónica; <strong>um</strong> quiosque <strong>de</strong><br />

jornais e revistas; <strong>um</strong> bebedouro público; <strong>um</strong> marco do correio; dois bancos <strong>de</strong> jardim. E<br />

árvores.<br />

Há muito tempo que tenho <strong>um</strong>a estranha relação afectuosa com esta ilha. No quiosque ven<strong>de</strong>mse<br />

<strong>de</strong>ssas revistas <strong>de</strong> viagens que agora proliferam e que perpetuam as fantasias sobre ilhas<br />

exóticas. Sempre me pareceu estranho nunca ter lido <strong>um</strong> artigo sobre a “ilha <strong>de</strong> Santos”. Estava<br />

convencido que só eu a via, só eu a imaginava vista <strong>de</strong> cima naufragando no meio dos horríveis<br />

autocarros lisboetas. Protegida pelas correntes anti-estacionamento selvagem, todos os dias<br />

suspirava <strong>de</strong> alívio por ainda ver a ilha no seu sítio, com as fronteiras bem <strong>de</strong>finidas – o que em<br />

si <strong>é</strong> <strong>um</strong>a das razões que faz das ilhas <strong>um</strong> dos nossos arqu<strong>é</strong>tipos mais resistentes. Outro dia<br />

reparei n<strong>um</strong>a ban<strong>de</strong>ira hasteada no passeio em frente. Era a ban<strong>de</strong>ira d<strong>um</strong>a organização que eu<br />

<strong>de</strong>sconhecia: “Amigos da Ilha <strong>de</strong> Santos”.<br />

Como algu<strong>é</strong>m que <strong>de</strong>scobre não estar só no mundo, aquela ban<strong>de</strong>ira foi alimento espiritual. Eis<br />

que a minha ilha tinha ban<strong>de</strong>ira e tudo. Eis que, afinal, existem mais habitantes virtuais daquele<br />

país que me dá gosto imaginar como <strong>um</strong> principado in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Sobretudo foi bom <strong>de</strong>scobrir<br />

que há mais gente a fazer parte do equipamento “imaginário” da ilha. Isolada dos passeios que<br />

bor<strong>de</strong>jam os quarteirões, frequentada por <strong>um</strong>a “população” móvel, provisória e em constante<br />

renovação, a ilha serve <strong>de</strong> plataforma <strong>de</strong> comunicações: apanhar <strong>um</strong> transporte, comprar <strong>um</strong><br />

jornal com notícias, enviar <strong>um</strong>a carta, fazer <strong>um</strong> telefonema. Os seus habitantes são do mais<br />

cosmopolita que há.<br />

Não sei quem são os “Amigos da Ilha <strong>de</strong> Santos”, mas já sinto por eles <strong>um</strong>a enorme simpatia.<br />

Primeiro, porque suponho que eles têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fantasiar com a geografia da cida<strong>de</strong>;<br />

segundo, pelo sentido <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or positivo, que nutre o gosto pelo aparentemente fútil; terceiro,<br />

pelo associativismo. Qual freguesia, qual cida<strong>de</strong>, qual partido político! Pertencer à Ilha <strong>de</strong><br />

Santos, protegê-la, significa criar <strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas que apenas se unem por <strong>um</strong>a<br />

projecção fantasiosa em torno <strong>de</strong> <strong>um</strong> acaso cartográfico: há poucas coisas tão engraçadas e tão<br />

interessantes do ponto <strong>de</strong> vista cultural e – porque não dizê-lo, já que se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong> “grupo” –<br />

político.<br />

Sobretudo ali. O bairro está, <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo geral, bastante <strong>de</strong>gradado. <strong>Bem</strong> sei que há quem<br />

fantasie sobre a <strong>de</strong>cadência, sobretudo realizadores <strong>de</strong> cinema estrangeiros: a lepra dos pr<strong>é</strong>dios,<br />

os passeios com buracos, as obras constantes, o lixo, a poluição dos veículos. Quem se<br />

confronta com isso todos os dias não lhe vê nenh<strong>um</strong> charme. É certo que o Museu <strong>de</strong> Arte<br />

Antiga foi recuperado; assim como o chafariz das Janelas Ver<strong>de</strong>s. Mas em plena rua das ditas<br />

continua a haver <strong>um</strong>a torrefacção <strong>de</strong> caf<strong>é</strong>s cujas camionetas inva<strong>de</strong>m os passeios e fazem da rua<br />

<strong>um</strong>a zona industrial. Os bares continuam a abrir, o que em si mesmo não <strong>é</strong> mau, o mesmo não<br />

se po<strong>de</strong>ndo dizer das pessoas que insistem em <strong>de</strong>slocar-se <strong>de</strong> carro para as noites. A escola<br />

primária <strong>é</strong> <strong>um</strong> nojo com o aspecto <strong>de</strong> estar em perigo <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrocada, quando, pare<strong>de</strong>s meias ou<br />

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