13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Nos piores momentos, sou daqueles que se queixam da falta <strong>de</strong> participação cívica dos meus<br />

conterrâneos. Há toda <strong>um</strong>a tradição <strong>de</strong> rezingar em voz baixa ou <strong>de</strong> protestar com gran<strong>de</strong>s<br />

gestos e isto quando a coisa não redunda em pancadaria. Dos mil e <strong>um</strong> processos em tribunal<br />

relativos a disputas entre vizinhos (sobretudo no Norte do país), at<strong>é</strong> à violência gratuita que nos<br />

apanha <strong>de</strong> surpresa nas ruas <strong>de</strong> Lisboa com assustadora frequência, todo o mundo <strong>de</strong>ixa saltar a<br />

tampa. Mas quando chega a hora <strong>de</strong> votar, a abstenção <strong>é</strong> o que sabemos; quando chega a hora <strong>de</strong><br />

organizar e coor<strong>de</strong>nar esforços para resolver <strong>um</strong> problema com<strong>um</strong>, raramente alg<strong>um</strong>a coisa<br />

acontece. Todos dizemos que a culpa estará na “educação” (ou falta <strong>de</strong>la), nas “mentalida<strong>de</strong>s”<br />

(fraca <strong>de</strong>sculpa) ou no “mau exemplo” dos políticos (e, no entanto, eles são aclamados nas<br />

campanhas eleitorais). Mas, caramba, não era já hora <strong>de</strong> <strong>um</strong> pouco mais <strong>de</strong> energia, <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> intervir?<br />

Outro dia, renasceu-me a esperança. Todos os dias compro o jornal na minha papelaria <strong>de</strong> bairro<br />

favorita (se bem que gostasse mais do casal <strong>de</strong> indianos orgulhosos que trespassaram o negócio<br />

para <strong>um</strong> casal “luso” <strong>um</strong> pouco subserviente). O diálogo fica-se pelo bom dia senhor doutor, at<strong>é</strong><br />

amanhã senhor doutor e pouco mais. Mas não <strong>é</strong> que nesse dia o dono da papelaria me mostra<br />

<strong>um</strong> papel e diz : “Senhor doutor, assine aqui este abaixo-assinado”? Gelei. Afinal passava-se<br />

qualquer coisa. Afinal, por trás da subserviência havia <strong>um</strong> cidadão engajado. Em vez <strong>de</strong> assinar<br />

<strong>de</strong> cruz resolvi prolongar o sabor daquele acto cívico, pedindo-lhe que me <strong>de</strong>ixasse ler o texto.<br />

Diagonalmente, i<strong>de</strong>ntifiquei logo alg<strong>um</strong>as palavras: “trânsito”, “carros”, “protesto”,<br />

“insustentável”. Comecei a gostar. Afinal eu não era o único revoltado com o imp<strong>é</strong>rio do<br />

automóvel em Lisboa?<br />

Já perceberam que a história tem <strong>um</strong> volte face, não <strong>é</strong>? É. Li o texto com mais atenção. Tratavase<br />

mais ou menos do seguinte: <strong>um</strong> protesto contra as obras <strong>de</strong> recuperação das Janelas Ver<strong>de</strong>s<br />

porque haviam provocado a perda <strong>de</strong> lugares <strong>de</strong> estacionamento. Repito: o protesto era contra a<br />

perda <strong>de</strong> lugares <strong>de</strong> estacionamento. Toda a minha esperança caiu por terra. Expliquei que me<br />

recusava a assinar porque o que me revoltava era a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> carros estacionados em cima<br />

dos passeios; o <strong>de</strong>srespeito dos automobilistas pelas passa<strong>de</strong>iras; o barulho e a poluição<br />

provocados por carros ocupados por <strong>um</strong>a só pessoa. Mais disse: que nunca tive verda<strong>de</strong>ira<br />

dificulda<strong>de</strong> em estacionar o meu carro, das poucas vezes que o uso, pela simples razão <strong>de</strong> que<br />

procuro lugar e acabo encontrando. Só que não logo e on<strong>de</strong> quero. E que o que menos falta no<br />

bairro <strong>é</strong> paragens <strong>de</strong> autocarro e carreiras para os mais diversos <strong>de</strong>stinos. E não me fiquei por<br />

aqui: disse que os autores da petição protestariam contra o preço <strong>de</strong> <strong>um</strong> parque subterrâneo, se<br />

houvesse; contra os parquímetros, se os instalassem. E arrancariam os pilares nas bordas dos<br />

passeios se os implantassem (como vi, horas <strong>de</strong>pois, n<strong>um</strong>a reportagem <strong>de</strong> TV sobre <strong>um</strong> outro<br />

bairro lisboeta).<br />

Não sei como classificar o olhar do dono da papelaria. Desilusão? Raiva? Terá pensado que eu<br />

era <strong>um</strong> snob? Um provocador? Não. Creio que simplesmente me olhou como <strong>um</strong> extraterrestre<br />

– <strong>um</strong>a criatura que al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> comprar o jornal todos os dias não acha que o carro <strong>é</strong> a coisa mais<br />

importante do mundo e acredita que os seres h<strong>um</strong>anos chegaram às ruas e às cida<strong>de</strong>s primeiro.<br />

Comprei o jornal e saí, ziguezagueando entre os carros, levantando limpa pára-brisas em<br />

protesto e empurrando com raiva os retrovisores laterais. At<strong>é</strong> ao dia em que os comece a riscar<br />

com <strong>um</strong>a afiadíssima e lisboeta “naifa”.<br />

De Olhos <strong>Bem</strong> Abertos<br />

(“Jornal Torrejano”, 09.12.99)<br />

Tenho uns amigos <strong>de</strong> Coimbra que vão muito mais ao cinema, ao teatro ou às exposições do que<br />

eu. Lisboeta, vivo na minha cida<strong>de</strong> como n<strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia confusa. Eles <strong>de</strong>scem à capital, aos fins<br />

<strong>de</strong> semana, com <strong>um</strong> guia <strong>de</strong> espectáculos na mão e, metodicamente, consomem cultura. Eu, o<br />

mais que faço <strong>é</strong> passear <strong>de</strong> bicicleta ao fim da tar<strong>de</strong> ao longo do rio, porque <strong>de</strong> resto trato da<br />

“vidinha”, <strong>um</strong>a coisa tenebrosa que me põe KO ao fim do dia, com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> me alienar em<br />

63

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!