Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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I<strong>de</strong>m em relação à adopção. A hipocrisia reinante <strong>de</strong>fine duas condições básicas para a adopção<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a criança: estabilida<strong>de</strong> afectiva (a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar amor à criança) e meios económicos<br />
para garantir o seu sustento. São inúmeros os homossexuais que o po<strong>de</strong>m fazer, mas <strong>é</strong>-lhes<br />
recusada a adopção com base no preconceito <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>senvolvimento afectivo da criança seria<br />
<strong>de</strong>sviado. Bom, que se saiba, todos os homossexuais são filhos <strong>de</strong> casais... heterossexuais.<br />
Quantos mais casos houvesse <strong>de</strong> adopção por homossexuais – adopções legalizadas – mais<br />
públicas e notórias elas seriam, e menos as crianças correriam riscos <strong>de</strong> se sentirem especiais,<br />
gozadas na escola, etc.<br />
Os partidos portugueses representados no parlamento reagiram mal. Pura e simplesmente não<br />
prestam para os homossexuais. Em todos reina a política do “façam o que quiserem, mas não<br />
mostrem”. Da avestruz centrista à comunista, põem todas o mesmo ovo. Nisto representam o<br />
senso com<strong>um</strong>: assim que <strong>um</strong>a pessoa ou grupo publicita <strong>um</strong>a postura política homossexual <strong>é</strong><br />
acusada <strong>de</strong> exibicionista, <strong>de</strong> ter gosto narcísico pela provocação. Muitos heterossexuais nunca<br />
pararam <strong>um</strong> segundo para pensarem no exibicionismo narcísico da heterossexualida<strong>de</strong> – nos<br />
beijos entre casais nas ruas, na publicida<strong>de</strong>, nos filmes.<br />
A idoneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gid<strong>de</strong>ns como gran<strong>de</strong> sociólogo contemporâneo (e heterossexual...) reforça a<br />
i<strong>de</strong>ia que tamb<strong>é</strong>m em Portugal começa a fermentar: a <strong>de</strong> que para mudar a política e a socieda<strong>de</strong><br />
<strong>é</strong> preciso mudar a “política da vida” (expressão <strong>de</strong>le). A sexualida<strong>de</strong> <strong>é</strong> cada vez menos <strong>um</strong>a<br />
essência fatalista, <strong>um</strong>a mecânica, ou <strong>um</strong> objecto <strong>de</strong> legislação. É cada vez mais <strong>um</strong> “estilo <strong>de</strong><br />
vida”, ligado à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e à postura do indivíduo perante os valores em confronto na<br />
praça pública. Muitas liberda<strong>de</strong>s e direitos estão consagrados por escrito, para que as pessoas<br />
possam recorrer a esse “contrato social” no caso <strong>de</strong> serem discriminadas pelo terrorismo do<br />
senso com<strong>um</strong> e da tradição. Para isto se fizeram as revoluções que iniciaram a Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. À<br />
esquerda já não basta referir a raça, a etnia, a religião, a classe, a ida<strong>de</strong>, o sexo ou o ambiente:<br />
ou inclui a orientação sexual ou não <strong>é</strong> esquerda. Da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilos, e da sua<br />
experimentação, <strong>é</strong> que se po<strong>de</strong> mudar a História naquilo que interessa: a vida quotidiana <strong>de</strong> cada<br />
<strong>um</strong>.<br />
O Portageiro da Noite<br />
(Jornal “Manifesto”, Outubro 1994)<br />
Lá em casa, os miúdos tinham inventado <strong>um</strong>a brinca<strong>de</strong>ira. A mais velha fazia <strong>de</strong> jornalista da<br />
SIC; o do meio fazia <strong>de</strong> GNR, e os g<strong>é</strong>meos dividiam-se nos pólos opostos: <strong>um</strong> fazia <strong>de</strong> gerente<br />
da JAE e o outro <strong>de</strong> automobilista. Com isto, estragaram-me as f<strong>é</strong>rias. Como são cru<strong>é</strong>is, as<br />
crianças! Começavam com a brinca<strong>de</strong>ira logo <strong>de</strong> manhã, ao pequeno-almoço. Na praia, não<br />
ligavam nenh<strong>um</strong>a ao mar, não faziam castelos <strong>de</strong> areia. Não. Só queriam “brincar às pontes”!<br />
No regresso a casa, pediam tanto que eu buzinasse que ao fim <strong>de</strong> dois dias o fusível do claxon já<br />
tinha estoirado. Depois, graças a Deus, acalmavam <strong>um</strong> bocadinho à hora das novelas; mas mal<br />
começavam os anúncios (eu acho que os anúncios excitam as crianças) lá vinha a ponte outra<br />
vez.<br />
A minha mulher aturou, caladinha, esta tortura. É <strong>um</strong>a santa. Depois das <strong>de</strong>pressões por que eu<br />
passara em Junho – com graves consequências na minha virilida<strong>de</strong> – não se atrevia a dizer nada.<br />
Sorria, perguntava-me <strong>de</strong>licadamente o que eu queria para o jantar, na praia <strong>de</strong>ixava-me<br />
açambarcar a sombra toda do chap<strong>é</strong>u-<strong>de</strong>-sol. À noite, na cama, fazia-me festinhas na cabeça at<strong>é</strong><br />
eu adormecer. Isto quando não tinha <strong>de</strong> ir correr os miúdos à estalada quando os “ti-no-nis” e as<br />
buzina<strong>de</strong>las no quarto aolado abanavam os beliches à maneira da ponte em dia <strong>de</strong> nortada.<br />
Quando as f<strong>é</strong>rias acabaram suspirei <strong>de</strong> alívio. Voltámos para o Feijó e o apartamento parecia o<br />
paraíso, não por ser nada <strong>de</strong> especial, mas porque os putos iam brincar para a rua e eu estava a<br />
per<strong>de</strong>r o interesse para eles. No dia 1 voltei para a ponte. Estava todo lampeiro: o regresso a<br />
casa tinha feito <strong>de</strong> mim <strong>um</strong> homem outra vez.<br />
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