Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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“primitivos”. Sozinha, a constatação não faz sentido. Falta-lhe acrescentar o vector histórico, o<br />
da criação da noção <strong>de</strong> H<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cruzamento entre culturas. Caso<br />
contrário, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> etnocentrismo como inerência po<strong>de</strong> ser (e tem sido) usada como<br />
legitimação para a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que haverá conflito on<strong>de</strong> houver mais do que <strong>um</strong>a cultura. Não digo<br />
que tal não seja possível. Só que nem todos os conflitos redundam em catástrofe, e não se po<strong>de</strong><br />
usar a sua possibilida<strong>de</strong> como justificação para apartheids profilácticos.<br />
A “raça” serviu como base “científica” para legitimar muitas formas <strong>de</strong> racismo. Basta verificar<br />
como em contextos multiraciais se classificam diferentemente as pessoas pelas características<br />
fenotípicas, para percebermos que a raça não <strong>é</strong> <strong>um</strong> dado mas <strong>um</strong> resultado <strong>de</strong> processos sociais<br />
<strong>de</strong> classificação. Abandonada a “raça” pelos antropólogos, continuou a ser usada pelo senso<br />
com<strong>um</strong>. A proposta <strong>de</strong> Verena Stolcke aponta no sentido <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> há uns anos para cá, se<br />
tornou tão estigmatizante (para as elites) falar <strong>de</strong> raça que se começou a usar o conceito <strong>de</strong><br />
cultura em sua substituição. Erradamente. Substituiu-se o <strong>de</strong>terminismo biológico pelo cultural.<br />
Basta ver o modo como os governos dos países ricos que recebem imigrantes tratam a questão:<br />
n<strong>um</strong> primeiro momento propuseram políticas <strong>de</strong> integração; n<strong>um</strong> segundo momento, propõem<br />
políticas que redundam na segregação. O pior <strong>é</strong> que o fazem com base n<strong>um</strong> suposto respeito<br />
pelas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais. Ao fazê-lo marcam ainda mais o carácter “estrangeiro” dos<br />
membros <strong>de</strong> outras culturas e coisificam o carácter “nacional” da cultura local. O pau tem dois<br />
bicos: os próprios movimentos das minorias culturais ten<strong>de</strong>m a reforçar esta vertente da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e da diferença exacerbadas.<br />
Paralelamente a este fundamentalismo cultural que caracteriza os nossos tempos – em que a<br />
correcção política da esquerda moralista acaba por dar trunfos ao reaccionarismo nacionalista –<br />
os governos apelam à luta contra a xenofobia, assim como os movimentos das minorias<br />
culturais e os movimentos <strong>de</strong> esquerda. Acontece, por<strong>é</strong>m, que a xenofobia (e não <strong>é</strong> por acaso<br />
que o uso da expressão <strong>é</strong> muito recente) parece ser o reverso da medalha do fundamentalismo<br />
cultural. Se assim for, a luta contra ela po<strong>de</strong> ter <strong>um</strong> efeito perverso: o <strong>de</strong> só lhe restar invocar<br />
como positivos os valores da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural com fronteiras bem <strong>de</strong>finidas – a base do<br />
fundamentalismo.<br />
É <strong>um</strong> dilema preocupante, pois o que parece continuar a estar fora das agendas <strong>é</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
crioulização e miscigenação, a única que me parece <strong>de</strong>sejável promover. Tal como a “raça” <strong>é</strong> o<br />
resultado <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> inscrever nos corpos diferenças inultrapassáveis, assim a “cultura”<br />
anda a ser utilizada como <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> inscrever nos territórios e nos estados formas <strong>de</strong> vida e<br />
<strong>de</strong> pensar monolíticas ou separadas. A luta contra a xenofobia está cheia <strong>de</strong> boas intenções. Mas<br />
precisa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a noção dinâmica e não essencialista <strong>de</strong> cultura. Em vez <strong>de</strong> “nós” e os “outros”,<br />
<strong>de</strong>veríamos promover <strong>um</strong>a categoria interm<strong>é</strong>dia, à semelhança do pronome pessoal castelhano:<br />
“nosoutros”.<br />
O Muro e a Re<strong>de</strong><br />
(Público, 12.05.96)<br />
Os anos noventa – e com eles o fim do s<strong>é</strong>culo – vão ficar marcados por dois símbolos: o muro<br />
<strong>de</strong> Berlim e a re<strong>de</strong> conhecida como Internet. O muro vai ficar conhecido pela sua queda, a re<strong>de</strong><br />
pela sua expansão. São dois temas e dois símbolos maçadores e problemáticos. Porque estão na<br />
ponta da língua <strong>de</strong> toda a gente; porque começam a ganhar o estatuto <strong>de</strong> “evidências” que não<br />
são questionadas; e porque querem dizer muito mais do que parece, nunca se explicitando esse<br />
“muito mais”. Em s<strong>um</strong>a: são bons materiais para fazer i<strong>de</strong>ologia. Se o muro <strong>de</strong> Berlim traz<br />
agarrada a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “pós-comunismo” e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong> “fim da História”, a Internet traz<br />
agarrada a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pós-capitalismo e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a nova utopia.<br />
Quem hoje reveja as imagens das celebrações do <strong>de</strong>rrube do muro não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> sorrir. O<br />
que era generosida<strong>de</strong>, parece agora ilusão. E o tempo passado entre <strong>um</strong> momento e outro parece<br />
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