13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

frente à TV, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter fingido que estou em contacto com o mundo verificando os meus<br />

e.mails (coisa que po<strong>de</strong>ria fazer nas profundas do Alentejo).<br />

Prosseguindo <strong>um</strong> plano <strong>de</strong> superação da minha tendência para me tornar n<strong>um</strong>a batata <strong>de</strong> sofá,<br />

outro dia quis ir ver o “De Olhos <strong>Bem</strong> Fechados” do Kubrick – mas já estava fora <strong>de</strong> cartaz.<br />

Tinha ido ver o último Almodovar, que achei <strong>um</strong> dos melhores filmes <strong>de</strong> sempre e <strong>um</strong> tratado<br />

sobre as relações entre sexualida<strong>de</strong> e latinida<strong>de</strong> (era preciso o Torrejano inteiro para<br />

<strong>de</strong>senvolver isto, <strong>de</strong>sculpem). Ao sair do filme pensei quão diferente era “o sexo <strong>de</strong> Almodovar”<br />

da obsessão germânica com o po<strong>de</strong>r (o Fassbin<strong>de</strong>r, por exemplo). Ou da pancada psicanalítica<br />

dos norte-americanos. Foi então que <strong>de</strong>cidi que tinha que ver o Kubrick (recusara-me a fazê-lo<br />

por <strong>de</strong>testar o Cruise e a Kidman); palpitava-me que daria <strong>um</strong>a bela comparação e que elevaria<br />

o Almodovar (ainda mais) aos píncaros.<br />

Acertei. O pobre do Kubrick, que já foi montanha, pariu <strong>um</strong> rato antes <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar. Mas<br />

<strong>de</strong>ixemos isso. O interessante da história <strong>é</strong> que, por mero acaso, <strong>de</strong>scobri o filme em exibição<br />

n<strong>um</strong> cinema d<strong>um</strong>a rua on<strong>de</strong> nunca havia passado. A sala não vem listada nos jornais. Mas <strong>é</strong> <strong>um</strong>a<br />

pequena viagem, que <strong>de</strong>veria vir referida nos roteiros <strong>de</strong> exposições sobre o Portugal pósmo<strong>de</strong>rno<br />

ou pós-colonial. Fica na cave <strong>de</strong> <strong>um</strong> mini centro comercial, daqueles <strong>de</strong> al<strong>um</strong>ínio e<br />

cheiro a lixívia que proliferaram nos anos oitenta. A primeira loja que salta à vista <strong>é</strong> <strong>um</strong>a loja <strong>de</strong><br />

produtos “afro-americanos”(sic), isto <strong>é</strong>, que ven<strong>de</strong> produtos <strong>de</strong> beleza – sobretudo <strong>de</strong><br />

cabeleireiro – para “afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes”, vulgo “negros”. Outra loja (?) <strong>é</strong> <strong>um</strong> espaço vazio, não<br />

fossem dois ou três caixotes no chão. Afixados aos vidros, alguns cartazes <strong>de</strong> campanha<br />

eleitoral. Mas campanha Guineense, que nas eleições portuguesas ainda não há senhores “afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes”<br />

com apelidos com a letra K. Na bilheteira do cinema, o computador está<br />

encimado por <strong>um</strong>a foto <strong>de</strong> Aga Khan, lí<strong>de</strong>r espiritual dos ismaelitas. Em redor, cartazes <strong>de</strong><br />

filmes indianos. Muitos. E enormes avisos pedindo aos espectadores que reservem os bilhetes<br />

por telefone. Imaginem-se as enchentes, naquele local perdido e “off-Broadway”, para ver as<br />

aventuras <strong>de</strong> <strong>um</strong> polícia tão brilhantemente incorrupto quanto a brilhantina do seu cabelo,<br />

assediado por donzelas roliças nas ruas <strong>de</strong> Calcutá. Uma <strong>de</strong>lícia.<br />

Claro que a sala não estava nas melhores condições. A esp<strong>um</strong>a da minha ca<strong>de</strong>ira queria<br />

<strong>de</strong>sesperadamente sair atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> três ou quatro crateras na napa. E a alcatifa, outrora amarela,<br />

apresentava as tonalida<strong>de</strong>s próprias <strong>de</strong> quem passou por <strong>um</strong> <strong>de</strong>rrame <strong>de</strong> petróleo ou, mais<br />

prosaicamente, por anos <strong>de</strong> incúria. A senhora indiana da bilheteira havia <strong>de</strong>morado 15 minutos<br />

a emitir o meu bilhete, pois o computador estava a “aquecer”. E os dois outros espectadores,<br />

espantados com o subterrâneo colonial, eram <strong>um</strong> jovem e <strong>um</strong> velho, o primeiro transportando a<br />

braços o segundo para a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas que o esperava cá em baixo. Ao lado, na cafeteria, os<br />

três clientes, todos “afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes”, olhavam, divertidos e <strong>de</strong> olhos bem abertos, os caras<br />

pálidas que haviam tropeçado naquele pedaço <strong>de</strong> História. <strong>Bem</strong> mais interessante, diga-se <strong>de</strong><br />

passagem, do que a do Kubrick, e <strong>um</strong>a história que os meus amigos <strong>de</strong> Coimbra nunca hão-<strong>de</strong><br />

ver listada no guia <strong>de</strong> espectáculos.<br />

A alface <strong>de</strong> Natal<br />

(“Jornal Torrejano”, 23.12.99)<br />

A pol<strong>é</strong>mica <strong>de</strong>ste Natal girou em torno <strong>de</strong> <strong>um</strong>a alface. Convenhamos que <strong>é</strong> não só original como<br />

bastante simpático do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> <strong>um</strong> alfacinha. O Centro Comercial das Amoreiras<br />

<strong>de</strong>cidiu fazer <strong>um</strong>a campanha publicitária em que figura <strong>um</strong> casal, aludindo a Maria e Jos<strong>é</strong>,<br />

mostrando-nos <strong>um</strong>a verdíssima e saudável alface. Como <strong>é</strong> natural – seriam incompetentes se<br />

não o fizessem – a Rádio Renascença e alguns grupos <strong>de</strong> católicos militantes vieram à praça<br />

pública repudiar o abuso.<br />

Provavelmente nunca tinham reparado na linha publicitária das Amoreiras, que <strong>de</strong> há tempos<br />

para cá usa o símbolo da alface para se aproximar dos lisboetas (e para dizer que o Colombo já<br />

64

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!