Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
À i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que Portugal <strong>é</strong> <strong>um</strong> país <strong>de</strong> brandos cost<strong>um</strong>es e conservador, on<strong>de</strong> nunca se po<strong>de</strong>rão<br />
viver i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s alternativas, junta-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que “lá fora” <strong>é</strong> diferente. Mas sempre com a<br />
ressalva que não se quer imitar essas experiências. A única referência ao estrangeiro <strong>é</strong> às<br />
paradas gay, ridicularizadas como exibicionistas. Impõe-se – tanto à repórter como aos<br />
entrevistados gays – a pergunta: o que <strong>é</strong> o carnaval (como o do Rio, transmitido anualmente nas<br />
Tvs) se não a mesma coisa? Que mal intrínseco há – do ponto <strong>de</strong> vista da cidadania – em fazer<br />
paradas provocatórias e celebratórias? Porque se pensa que as pessoas que nelas participam<br />
passam a vida naquilo e só naquilo? Mais importante teria sido referir tudo o que cá não há:<br />
grupos <strong>de</strong> apoio, centros sociais, comunida<strong>de</strong>s, jornais. Tudo o que evitaria que no dia seguinte<br />
à emissão eu recebesse telefonemas <strong>de</strong> gente aflita e isolada por esse país fora, que não sabe<br />
com quem falar sobre os seus sentimentos, <strong>de</strong>sejos e receios <strong>de</strong> perseguição.<br />
Curiosamente, a sequência com a cantora Dina foi o momento mais real e h<strong>um</strong>ano do programa,<br />
porque <strong>de</strong>monstrou que ser gay não <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa <strong>de</strong>finida, ao contrário do que muitos <strong>de</strong>sejam.<br />
Po<strong>de</strong> ser, para quem quiser, <strong>um</strong>a das muitas esferas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e comunida<strong>de</strong> em que as<br />
pessoas vivem. Mas não <strong>é</strong> nem a única nem a <strong>de</strong>terminante. Embora o trabalho <strong>de</strong> Gonçalo<br />
Dinis e da ILGA seja muito importante, discordo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as das suas premissas, como a crítica<br />
a certas práticas sexuais ou certas formas <strong>de</strong> afirmação. Não penso que a aceitação social dos<br />
gays tenha <strong>de</strong> passar pela igualização, pela aparência <strong>de</strong> “normalida<strong>de</strong>”. Isso <strong>é</strong> o que o espírito<br />
“tolerante e liberal” <strong>de</strong>seja. O que se <strong>de</strong>ve exigir <strong>é</strong> outra coisa: pluralismo e discordância,<br />
assentes n<strong>um</strong> contrato social mínimo baseado no respeito pelo livre arbítrio, o mútuo<br />
consentimento e a recusa <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> opressão ou exploração das pessoas. A ILGA tem o<br />
m<strong>é</strong>rito <strong>de</strong> estar a constituir <strong>um</strong>a plataforma <strong>de</strong> acção gay em Portugal. Assim como o GTH tem<br />
o m<strong>é</strong>rito <strong>de</strong> ter introduzido a sexualida<strong>de</strong> no seio da política partidária. Mas nem <strong>um</strong>a nem outro<br />
<strong>de</strong>veriam sentir-se obrigados a traduzir a homossexualida<strong>de</strong> nos termos da norma vigente, do<br />
“rapaz que não se teria vergonha <strong>de</strong> apresentar aos pais”, nem nos termos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a alternativa <strong>de</strong><br />
vida total.<br />
“Entre iguais”, cheio <strong>de</strong> boas intenções, não só reproduziu estereótipos, como os<br />
espectacularizou e erotizou. Outra coisa não seria <strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> <strong>um</strong> programa que fala “<strong>de</strong>les”,<br />
os homossexuais, como categoria. Reproduziu tamb<strong>é</strong>m a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o que <strong>é</strong> preciso <strong>é</strong> não dar<br />
escândalo, remetendo a sexualida<strong>de</strong> para o estritamente privado. Não investigou as causas da<br />
estigmatização. Não problematizou as i<strong>de</strong>ias feitas sobre os g<strong>é</strong>neros. Dizer que os gays são<br />
clan<strong>de</strong>stinos porque gostam disso ou se conformam <strong>é</strong> apenas meia-verda<strong>de</strong>. A outra meta<strong>de</strong> não<br />
mostrada <strong>é</strong> a do pluralismo <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> vida. Uma socieda<strong>de</strong> como <strong>de</strong>ve ser <strong>é</strong> <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong><br />
que aceita o engate e o quarto escuro, como aceita o casal vestido <strong>de</strong> fato e gravata, como aceita<br />
a mãe solteira, as “bichas” e os grupos gay que jogam na estrat<strong>é</strong>gia da igualização. Aceita tudo,<br />
sem juízo sobre o que <strong>é</strong> correcto ou incorrecto. Por estranho que pareça, isto <strong>é</strong> <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong><br />
valores morais e políticos: os da não interferência na liberda<strong>de</strong> alheia. Ningu<strong>é</strong>m tem que<br />
“compreen<strong>de</strong>r” ou “tolerar” ou “traduzir”os outros (estando implícito nisto que “não façam<br />
ondas”), mas sim respeitar para ser respeitado, mesmo tendo à sua volta coisas e pessoas que<br />
“<strong>de</strong>sagradam”. Aí sim, estaríamos “entre iguais”.<br />
A Guerra do Futebol<br />
(Público, 09.06.96)<br />
Em 1969, El Salvador invadiu as Honduras. A guerra durou apenas cem horas, mas morreram<br />
milhares <strong>de</strong> pessoas e o número <strong>de</strong> refugiados ascen<strong>de</strong>u a cem mil. Embora hoje saibamos que<br />
as causas profundas se prendiam com questões <strong>de</strong> economia política, aquela guerra ficou<br />
conhecida como “a guerra do futebol”, pois aconteceu na sequência <strong>de</strong> três jogos pol<strong>é</strong>micos<br />
entre as equipas dos dois países durante a selecção para o Mundial. Para o com<strong>um</strong> dos mortais<br />
indígenas, a guerra <strong>de</strong>veu-se – e <strong>de</strong> forma legítima – a <strong>um</strong>a disputa futebolística.<br />
30