Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
obrigadas a ler jornais estrangeiros e livros estrangeiros e a ver a televisão por sat<strong>é</strong>lite, e<br />
sentimo-nos muito satisfeitos nesta fantasia, que chega a ser louca, como quando dizemos que<br />
vivemos no melhor clima do mundo quando aturamos dois meses <strong>de</strong> chuva. Por outro lado, há<br />
aquilo <strong>de</strong> que Jorge Sampaio se queixava, que <strong>é</strong> o queix<strong>um</strong>e constante, a crítica constante, a<br />
sensação <strong>de</strong> que não se está no sítio certo, <strong>de</strong> que <strong>é</strong> preciso ir à capital que está noutro sítio que<br />
não neste país; o sub<strong>de</strong>senvolvimento, o atraso, a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autosustentação da nossa<br />
economia. E tudo isto tem por cima <strong>um</strong> chap<strong>é</strong>u-<strong>de</strong>-chuva muito po<strong>é</strong>tico, sobre como isto <strong>é</strong> <strong>um</strong><br />
país que não só foi gran<strong>de</strong> como tem <strong>um</strong> <strong>de</strong>vir que há-<strong>de</strong> ser <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> recuperação da sua<br />
gran<strong>de</strong>za anterior. Não tem nada a ver com aquilo que po<strong>de</strong> vir a passar-se, nem sequer com<br />
aquilo que foi o passado. O que era preciso era perceber qual <strong>é</strong> o potencial <strong>de</strong> <strong>um</strong> país<br />
semiperif<strong>é</strong>rico. É o da mestiçagem, da hibri<strong>de</strong>z. Para dar <strong>um</strong> exemplo pueril: o do tipo que faz<br />
rap em Portugal. Temos imenso potencial para po<strong>de</strong>r jogar com as muitas influências que temos<br />
recebido. Isso não passa necessariamente pela velha história. Diz-se que agora o que temos <strong>de</strong><br />
fazer <strong>é</strong> a ligação com o mundo <strong>de</strong> língua oficial portuguesa. Por que raio só com o mundo <strong>de</strong><br />
língua oficial portuguesa? Porque não com outros tamb<strong>é</strong>m?<br />
EXP. – E resultados disso, haverá?<br />
M.V.A. – Há coisas inovadoras, que podiam ser feitas em qualquer parte do mundo e<br />
reconhecidas como boas, mas que foram produzidas aqui porque as pessoas perceberam que<br />
estavam n<strong>um</strong> sítio estranho em relação aos sítios míticos que lhes ensinaram. Um português <strong>é</strong><br />
ensinado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança que os sítios verda<strong>de</strong>iros e reais são lá fora, em Paris, Londres, Nova<br />
Iorque, on<strong>de</strong> se fazem as coisas a s<strong>é</strong>rio. E <strong>de</strong>pois dizem-lhe que há uns espaços míticos,<br />
africanos, latino-americanos e orientais, sítios para on<strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa po<strong>de</strong> ir espairecer e<br />
encontrar o passado do país. Tamb<strong>é</strong>m há indivíduos que apostam n<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia verda<strong>de</strong>iramente<br />
mítica que <strong>é</strong> a da ruralida<strong>de</strong> portuguesa, e das tradições, e das raízes do país. Ora esses três<br />
referentes que nos são ensinados são fantasiosos. Porque Portugal, neste momento, são as<br />
capitais <strong>de</strong> distrito, que a<strong>um</strong>entaram <strong>de</strong> população – e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, aliás – com o fim da<br />
ruralida<strong>de</strong>. E o Portugal <strong>de</strong> Lisboa e Porto, cida<strong>de</strong>s carregadas <strong>de</strong> subúrbios e com problemas<br />
terríveis <strong>de</strong> crescimento urbano. E <strong>é</strong> o Portugal <strong>de</strong> pessoas que cada vez mais ouvem música,<br />
vêem cinema, viajam... Um sítio <strong>de</strong> clivagens sociais que, em vez <strong>de</strong> estarem a <strong>de</strong>saparecer,<br />
estão a tornar-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> novo tipo. Já não <strong>é</strong> o paternalismo, o pobrezinho que bate à porta. Agora<br />
<strong>é</strong>, claramente, a exclusão e afastamento entre classes completamente distintas. Esta <strong>é</strong> que <strong>é</strong> a<br />
nossa realida<strong>de</strong>, e <strong>é</strong> sobre ela que cientistas sociais, jornalistas e outros produtores <strong>de</strong> cultura<br />
têm <strong>de</strong> trabalhar<br />
Caixa: Compreen<strong>de</strong>r o Mundo. Por Rui Rocha (†)<br />
Provavelmente o próprio não apreciará o epíteto – mas, quando penso em <strong>Miguel</strong> <strong>Vale</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Almeida</strong>, a palavra que me ocorre <strong>é</strong> “intelectual”. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curiosa esta necessida<strong>de</strong><br />
bem educada <strong>de</strong> introduzir <strong>um</strong>a ressalva antes <strong>de</strong> chamar a algu<strong>é</strong>m intelectual. A <strong>de</strong>gradação do<br />
termo constitui <strong>um</strong> indício político: na g<strong>é</strong>nese da categoria está, pelo menos toda a gente o diz, o<br />
“J’Accuse” <strong>de</strong> Zola, a intervenção <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa que vem das artes ou das h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>s no<br />
campo propriamente cívico (e, já agora, a recusa do termo “h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>s” não <strong>é</strong> inocente, e<br />
talvez seja muito menos progressista do que pensam os mentores das “ciências sociais”). Essa<br />
tem sido a visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Vale</strong> <strong>de</strong> <strong>Almeida</strong>: a <strong>de</strong> trazer para a praça pública <strong>um</strong> discurso<br />
informado, que não se autoriza, por<strong>é</strong>m, dos títulos acad<strong>é</strong>micos, antes se dá a ver, transparente<br />
nos princípios referenciais. A prática dos seus trabalhos acad<strong>é</strong>micos <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m a mesma:<br />
“Interpretação não <strong>é</strong> levianda<strong>de</strong>. É <strong>um</strong>a responsabilida<strong>de</strong>. Perante os meus informantes, que<br />
sabem melhor que ningu<strong>é</strong>m dirigir as suas vidas. Perante a aca<strong>de</strong>mia, que julga a coerência<br />
interna e a plausibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a interpretação. Não pretendo emitir juízos sobre os valores dos<br />
meus informantes, mas tão-pouco posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ass<strong>um</strong>ir que, quando se fala <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero, se está<br />
a ser político, porqne em causa estão relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r/dominação e questões como o prazer, a<br />
liberda<strong>de</strong>, a família, a reprodução, a moral, em discussão permanente na nossa socieda<strong>de</strong>.” Esta<br />
passagem da introdução à tese <strong>de</strong> doutoramento, publicada, podia servir <strong>de</strong> manifesto, se fosse o<br />
216