13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Preguiça dominical. Você folheia o suplemento <strong>de</strong> <strong>um</strong> jornal “<strong>de</strong> referência”. Traz <strong>um</strong>a peça<br />

sobre os problemas da educação sexual e afectiva dos adolescentes. Trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> problema<br />

com que todos os pais se confrontam: o que dizer e como; o que <strong>de</strong>ixar fazer ou não; como<br />

precaver situações in<strong>de</strong>sejadas. Tudo: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> don<strong>de</strong> vêm os beb<strong>é</strong>s at<strong>é</strong> que fazer contra a sida,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a gravi<strong>de</strong>z adolescente at<strong>é</strong> como estimular relações afectivas sólidas. Mas como se dizia<br />

no Ast<strong>é</strong>rix em relação à Gália ocupada, “Tudo? Não...”. Não estava lá tudo, ou seja, não havia<br />

<strong>um</strong>a só referência à homossexualida<strong>de</strong>. Significa isto que, para o jornal <strong>de</strong> referência – que, por<br />

sua vez, <strong>é</strong> lido sobretudo pela classe m<strong>é</strong>dia e alta, o que normalmente indiciaria <strong>um</strong> nível<br />

intelectual superior – das duas <strong>um</strong>a: ou a homossexualida<strong>de</strong> <strong>é</strong> <strong>um</strong> “problema” tão grave que não<br />

dá para falar <strong>de</strong>le naquele contexto, ou então <strong>é</strong> <strong>um</strong> fenómeno tão <strong>de</strong>spiciendo, tão raro, tão<br />

insólito, tão pouco representativo, que nem vale a pena falar <strong>de</strong>le. É claro que há <strong>um</strong>a terceira<br />

possibilida<strong>de</strong>: nem ter ocorrido ao autor da peça que tal coisa exista ou que se manifeste entre<br />

jovens. Ora, você suspeita, pelo que viveu, viu e continua a ver, que a questão da orientação<br />

sexual <strong>é</strong> <strong>um</strong>a questão fundamental – estruturante, mesmo – do <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

personalida<strong>de</strong>, da <strong>de</strong>scoberta do corpo, da construção dos afectos. E sabe que muito do<br />

sofrimento que por aí vai, sobretudo entre jovens, se pren<strong>de</strong> não com o problema da<br />

homossexualida<strong>de</strong>, mas com o problema da homofobia. O pânico <strong>de</strong> muitos jovens <strong>é</strong> que se<br />

<strong>de</strong>scubra, que se diga mal, que sejam perseguidos. E o silêncio, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que “isso” não existe,<br />

<strong>de</strong> que não vale a pena levantar a questão ou <strong>de</strong> que só acontece aos outros, leva a esta esp<strong>é</strong>cie<br />

<strong>de</strong> ditadura do não dito. Assim se reproduz o heterossexismo.<br />

Mas o jornal <strong>de</strong> referência, diz você, <strong>é</strong> suposto ser para pessoas esclarecidas. Lêem-no em casa<br />

ou no caf<strong>é</strong> e os miúdos nem lhe tocam. O pior <strong>é</strong> que os miúdos têm outros sítios on<strong>de</strong> obter<br />

informação (in-formação?). Eles vão à escola e nessa escola, <strong>de</strong> <strong>um</strong> país on<strong>de</strong> o aborto <strong>é</strong> ilegal e<br />

a educação sexual inexistente, existe agora <strong>um</strong> programa ministerial <strong>de</strong> apoio a acções<br />

formativas sobre sexualida<strong>de</strong> por parte <strong>de</strong> ONGs e outras associações. Está explícito na lei –<br />

com base na Constituição – que estas acções <strong>de</strong> formação não po<strong>de</strong>m ter conteúdos políticopartidários<br />

ou confessionais, entre outros que atentariam contra a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, a<br />

<strong>de</strong>mocracia e a laicida<strong>de</strong> do Estado e da escola. Acontece por<strong>é</strong>m que <strong>um</strong>a certa associação (a<br />

Fundação Família e Socieda<strong>de</strong>) foi subsidiada para propagan<strong>de</strong>ar <strong>um</strong>a “visão cristã do sexo”,<br />

para <strong>de</strong>sviar os jovens da masturbação, para <strong>de</strong>monstrar como a contracepção <strong>é</strong> contrária à<br />

natureza do acto sexual e para divulgar a linha da Igreja sobre a homossexualida<strong>de</strong> (que se<br />

res<strong>um</strong>e nisto: “sejam isso mas não pratiquem”, <strong>um</strong>a t<strong>é</strong>cnica <strong>de</strong> tortura <strong>de</strong> que a Inquisição nunca<br />

se lembrou).<br />

E agora a cereja no bolo. Imagine que <strong>é</strong> homossexual (ainda não lhe havia proposto isto; espero<br />

que consiga) e há poucos meses que vive com outro homem: estão apaixonados, a construir <strong>um</strong>a<br />

vida em com<strong>um</strong>, habitam a mesma casa, têm <strong>um</strong>a conta conjunta no banco, tomam <strong>de</strong>cisões em<br />

conjunto, e ass<strong>um</strong>em-se como casal perante toda a gente. Um dia vão a <strong>um</strong> jantar com <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie<br />

<strong>de</strong> amigos que já não vêem há alg<strong>um</strong> tempo. Eles já sabem da sua novida<strong>de</strong> afectiva, mas não a<br />

comentam. São simpáticos, <strong>é</strong> certo; não tentaram evitar que o seu namorado estivesse presente<br />

no jantar, <strong>é</strong> certo; e comportaram-se polidamente consigo e com ele ao longo da noite. E são boa<br />

gente, você gosta genuinamente <strong>de</strong>les. Certo. Mas n<strong>um</strong> dado momento, <strong>um</strong>a das amigas anuncia<br />

que se vai casar com <strong>um</strong> dos amigos presentes. Gran<strong>de</strong> comoção e alegria. No fim do jantar<br />

alguns dos presentes comentam consigo as novida<strong>de</strong>s. Você ainda pensa que vão comentar a sua<br />

novida<strong>de</strong>, mas não, referem-se àquele anúncio <strong>de</strong> casamento. Um casamento que ainda está por<br />

acontecer. E geram-se conversas sobre o casamento, o amor, os casais, enfim, o romance do<br />

romance com que todos vivemos. Toda a gente parece estar fascinada com a velocida<strong>de</strong> das<br />

mudanças: ainda ontem jovens <strong>de</strong>spreocupados, hoje pessoas a entrarem na aventura do<br />

casamento. Quando chega a casa você apercebe-se que, durante toda a noite, não houve <strong>um</strong><br />

único comentário ao facto <strong>de</strong> você viver com o seu namorado; que todas as conversas se<br />

referiam aos percursos afectivos dos outros, mas não ao seu; que nunca, n<strong>um</strong> só momento,<br />

algu<strong>é</strong>m referiu o facto <strong>de</strong> que você e o seu namorado eram, para todos os efeitos, as únicas<br />

pessoas casadas naquele grupo. Os primeiros. Você ainda pensa que se trata <strong>de</strong> vergonha. De<br />

pudor. De não ter vocabulário para falar <strong>de</strong>. Compreensivamente, tece <strong>um</strong>as teorias sobre como<br />

96

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!