Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
“curados”, que interiorizaram a homofobia? Isto <strong>é</strong> tanto mais pat<strong>é</strong>tico nos casos <strong>de</strong> pessoas que<br />
<strong>de</strong> facto foram abusadas em crianças e que, pelo efeito <strong>de</strong> hegemonia, não conseguem fazer a<br />
<strong>de</strong>strinça entre o abuso <strong>de</strong> que foram vítimas e a sua homossexualida<strong>de</strong> – ao passo que muitas<br />
mulheres tra<strong>um</strong>atizadas por abusos <strong>de</strong> que foram vítimas não põem sequer em causa a sua<br />
heterossexualida<strong>de</strong>.<br />
Era preciso que algu<strong>é</strong>m dissesse muito claramente (e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo os jornalistas e o po<strong>de</strong>r<br />
judicial): hetero e homossexualida<strong>de</strong> são duas orientações sexuais. Pedofilia <strong>é</strong> <strong>um</strong> crime contra a<br />
liberda<strong>de</strong> e o mútuo consentimento 3[2] . Há heterossexuais e homossexuais que praticam a<br />
pedofilia. Há outros que não. O problema <strong>é</strong> que, quer do ponto <strong>de</strong> vista social e das<br />
mentalida<strong>de</strong>s, quer <strong>de</strong> facto em termos <strong>de</strong> direitos e visibilida<strong>de</strong>, homo e heterossexualida<strong>de</strong> não<br />
são sim<strong>é</strong>tricas, mas sim assim<strong>é</strong>tricas. Pedofilia e homossexualida<strong>de</strong> são facilmente metidas no<br />
mesmo saco: o da expressões <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> contrárias à norma da família heterossexual<br />
monogâmica e reprodutora. A mesma que, por ser <strong>um</strong> projecto impossível <strong>de</strong> se garantir a<br />
100%, cria as instituições (e não cria ou não <strong>de</strong>ixa criar as alternativas) que escon<strong>de</strong>m a sua<br />
própria falha. Militarizadas, monossexuais, fora do quotidiano e da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<br />
<strong>de</strong>ste, <strong>é</strong> nessas instituições que se cria o campo para reproduzir os próprios fantasmas da<br />
moralida<strong>de</strong> reinante e para reproduzir, entre os marginalizados (sociais ou sexuais) a sua falta <strong>de</strong><br />
auto-estima e a sua auto-culpabilização. Mas conv<strong>é</strong>m não esquecer que, para lá <strong>de</strong> casos como o<br />
da Casa Pia, mais fáceis <strong>de</strong> divulgar por razões <strong>de</strong> escala <strong>de</strong>mográfica, há tantos ou mais casos<br />
acontecendo na “privacida<strong>de</strong>” dos espaços dom<strong>é</strong>sticos e das famílias alargadas.<br />
Não <strong>é</strong> por acaso que, seja na B<strong>é</strong>lgica, nos EUA ou em Portugal, estes casos acontecem nas<br />
instituições que servem para gerir as falhas do sistema – ou, seguindo o meu raciocínio inicial,<br />
para o perpetuarem – ou que se formatam <strong>de</strong> acordo com regras diferentes e opostas às da vida<br />
quotidiana: Igrejas, escolas, orfanatos. Não <strong>é</strong> por acaso que existe sempre <strong>um</strong> elemento <strong>de</strong><br />
hierarquia ou exercício do po<strong>de</strong>r, entre classes, estatutos ou gerações. Não <strong>é</strong> por acaso que o<br />
<strong>de</strong>nominador com<strong>um</strong> a tudo isto parece ser a masculinida<strong>de</strong>. E não <strong>é</strong> por acaso que a atenção à<br />
pedofilia gera sempre a atenção a formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e sexualida<strong>de</strong> perseguidas, confundindo<br />
orientações sexuais com a questão da liberda<strong>de</strong> e autonomia dos indivíduos nas relações sexuais<br />
e nos arranjos emocionais. Porque <strong>é</strong> tão difícil perceber que estas coisas fazem sistema? Porque<br />
se estaria a pôr em causa a sacralida<strong>de</strong> da fantasia das normas familiares, <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero e <strong>de</strong> classe<br />
com que insistimos em viver.<br />
Por fim, o caso específico português, introduz <strong>um</strong>a questão acessória mas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância<br />
política: como será possível levar as investigações at<strong>é</strong> ao fim – sobretudo se o caso envolve<br />
pessoas “po<strong>de</strong>rosas” – <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>scalabro que foi o assassinato das Comissões Parlamentares<br />
<strong>de</strong> Inqu<strong>é</strong>rito envolvendo a própria Ministra da Justiça? Como <strong>é</strong> possível, agora, confiar na PJ,<br />
no sistema político e judicial? Curioso <strong>é</strong> que nenh<strong>um</strong> jornalista tenha ainda feito esta ligação,<br />
obcecados que estão em dar tempo <strong>de</strong> antena quer aos “casos h<strong>um</strong>anos” (entenda-se: pessoas<br />
que <strong>de</strong>screvem actos sexuais), quer às ambiguida<strong>de</strong>s <strong>é</strong>ticas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ex-secretária <strong>de</strong> Estado da<br />
“Família”....<br />
Sexo, Vidas e Crianças<br />
(Webpage, 6.12.02)<br />
3[2] Não creio que tenha interesse questionar o tabu cultural contra a pedofilia. O menor, ao ser<br />
consi<strong>de</strong>rado como tal, não está a ver negado <strong>um</strong> direito à sua sexualida<strong>de</strong>; está simplesmente “à espera”<br />
<strong>de</strong> usufruir <strong>de</strong>le quando for maior. Os casos ambíguos, <strong>de</strong> menores que sabem o que fazem e querem, não<br />
servem para justificar <strong>um</strong>a qualquer liberalização das relações entre menores e adultos. De modo a<br />
proteger o maior número <strong>é</strong> importante haver <strong>um</strong>a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consentimento. Que haja ida<strong>de</strong>s diferentes para<br />
os dois sexos ou que a pedofilia activa seja diferenciada pelo sexo da vítima em termos <strong>de</strong> penas, isso sim<br />
já <strong>é</strong> escandaloso. Menos interessante ainda <strong>é</strong> o exercício puramente intelectual <strong>de</strong> invocar a Gr<strong>é</strong>cia Antiga<br />
ou qualquer população “exótica” como fonte para a legitimação das relações menores-adultos, pois a<br />
<strong>de</strong>scontextualização <strong>é</strong> imensa.<br />
141