13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Ela. Não, ele. Não, ela.<br />

(Combate, Junho 1993)<br />

Des<strong>de</strong> My Beautiful Laun<strong>de</strong>rette, <strong>de</strong> Stephen Frears, que não se via <strong>um</strong> filme tão importante<br />

como The Crying Game (Jogo <strong>de</strong> Lágrimas), <strong>de</strong> Neil Jordan. Ambos os filmes preferem<br />

apresentar-se como objectos <strong>de</strong> Crítica Cultural, e não como obras <strong>de</strong> arte. Os Cahiers du<br />

Cinema são magnificamente postos no caixote do lixo e o lado “popular” do cinema trazido, <strong>de</strong><br />

novo, ao <strong>de</strong> cima: contar <strong>um</strong>a história, comover, mexer com as cabeças das pessoas, cruzar<br />

temáticas que sempre se separam. Provocar <strong>de</strong>bate. De preferência com bons arg<strong>um</strong>entos, bons<br />

actores, boa realização, boa montagem, etc.<br />

A história res<strong>um</strong>e-se assim. A personagem principal <strong>é</strong> militante do IRA. Para quem não saiba, <strong>é</strong><br />

<strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> católicos que viram muitos filmes bíblicos. A sua c<strong>é</strong>lula rapta <strong>um</strong> soldado negro do<br />

ex<strong>é</strong>rcito <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong>. Os dois homens <strong>de</strong>scobrem-se <strong>um</strong> ao outro como pessoas e não<br />

como funções. Enten<strong>de</strong>m-se. Se quiserem, apaixonam-se, no sentido platónico, para gran<strong>de</strong><br />

perplexida<strong>de</strong> e irritação dos camaradas e controleiros mais ferrenhos. O herói <strong>é</strong> obrigado a<br />

matar o soldado, mas <strong>de</strong>ixa-o fugir no último momento. Na fuga simulada ele <strong>é</strong> atropelado e<br />

morre. O herói parte para Inglaterra e muda <strong>de</strong> vida. Quer conhecer a rapariga <strong>de</strong> que o soldado<br />

tanto gostava. Encontra-a. Apaixonam-se. A dois terços do filme, quando a cena <strong>de</strong> amor<br />

começa, ele <strong>de</strong>scobre que a moça era, afinal, moço. Ela pensava que ele sabia. Afinal, haviamse<br />

conhecido n<strong>um</strong> bar <strong>de</strong> travestis. Ele nem <strong>de</strong>ra por nada. E os espectadores tão-pouco.<br />

Aqui o filme explo<strong>de</strong>. At<strong>é</strong> então, tínhamo-nos apercebido <strong>de</strong> que a atracção <strong>de</strong>le por ela era em<br />

gran<strong>de</strong> medida <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> expiação pela morte do soldado. E <strong>um</strong>a forma (o inconsciente tem<br />

caminhos tão tortuosos como os do Senhor) <strong>de</strong> os dois homens se (re)unirem, por interposta<br />

mulher. Para mais, ela era <strong>de</strong>veras fascinante: boa pessoa, original, com h<strong>um</strong>or, bonita, sensual,<br />

perspicaz. Mas no momento em que <strong>de</strong>scobre que em vez d<strong>um</strong>a vagina, a zona genital apresenta<br />

<strong>um</strong> p<strong>é</strong>nis, corre para a casa-<strong>de</strong>-banho a vomitar. É <strong>um</strong>a cena que dói, quase tanto quanto à<br />

personagem da rapariga. Porque digo “ela”? Porque aqui está o busílis do filme e o <strong>de</strong>bate<br />

cultural que suscita. É que aquela pessoa <strong>é</strong> <strong>um</strong>a mulher porque diz que o <strong>é</strong>. Porque quer sê-lo.<br />

Porque se sente mulher. Pouco importa porquê, pouco importa se isso <strong>é</strong> “politicamente<br />

correcto”. Muita da esquerda sexual acha a homossexualida<strong>de</strong> o máximo mas o travestismo e o<br />

transexualismo como <strong>um</strong>a caricaturização das mulheres ou <strong>um</strong>a submissão aos estereótipos<br />

sexuais. Po<strong>de</strong> ser assim, mas não necessariamente. Um dos <strong>de</strong>bates que toda a gente que viu o<br />

filme teve foi sobre se o actor era homem ou mulher. Ou travesti. Ou transexual. Pergunto: que<br />

importa?<br />

O filme muda aqui porque muitos espectadores ficam com <strong>um</strong> problema semelhante ao do<br />

herói: como lidar com aquilo? Como ver, agora que se sabe, aquela personagem? Diga-se <strong>de</strong><br />

passagem que o herói não consegue ultrapassar estas questões: guarda a memória (?) <strong>de</strong> ter<br />

gostado <strong>de</strong>la, mas não consegue ultrapassar a barreira genital. O IRA torna a exigir-lhe tarefas, a<br />

ex-camarada <strong>de</strong> armas e cama aparece, vingativa, a recrutá-lo. Tudo acaba em sangue, com a<br />

ex-noiva do soldado matando a megera do IRA. E salvando o herói.<br />

Jogo <strong>de</strong> Lágrimas <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m <strong>um</strong> filme-jogo, cheio <strong>de</strong> pistas. Parece <strong>um</strong>a sessão <strong>de</strong> análise. No<br />

princípio, o soldado negro, atado e vendado, pe<strong>de</strong> ao herói que o aju<strong>de</strong> a fazer chichi. O tempo<br />

que o rapaz levou a ultrapassar os seus preconceitos! At<strong>é</strong> que lá pegou no sexo do outro. Que <strong>é</strong><br />

igual ao seu... O mal estar com os corpos torna-se a dar na cena do vómito. Mas quando tenta<br />

proteger a rapariga dos perigos do IRA, corta-lhe o cabelo (sinónimo <strong>de</strong> castração) e fá-la<br />

parecer-se com <strong>um</strong> rapaz. Ela pensa que ele está a fazê-la mais masculina por razões eróticas.<br />

Gosta tanto <strong>de</strong>le que aceita a hipótese <strong>de</strong> <strong>um</strong> jogo <strong>de</strong> homossexualida<strong>de</strong> “normal”.<br />

IRA, raça, sexo, g<strong>é</strong>nero, amor: tudo se cruza neste filme. Já como em My Beautiful Laun<strong>de</strong>rette,<br />

a política e o sexo misturam-se, as lutas sociais e as lutas sexuais. E cruzam-se no que <strong>é</strong><br />

verda<strong>de</strong>iramente fundamental: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A primeira brecha na muralha pr<strong>é</strong>-fabricada que o<br />

170

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!