Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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contrário, acho que o problema foi ter querido fazer a Revolução. Nenh<strong>um</strong>a coisa neste mundo<br />
e nesta vida <strong>é</strong> começada <strong>de</strong> novo. Não há tábuas rasas. O tipo <strong>de</strong> frenesi (obviamente motivado<br />
pelo grau absurdo <strong>de</strong> injustiça da nossa socieda<strong>de</strong> à <strong>é</strong>poca) que se viveu gerou duas coisas: a<br />
alienação daqueles a quem os revolucionários queriam ajudar (basta ver os resultados eleitorais<br />
da <strong>é</strong>poca); e a reacção da direita, tão forte e primária que conseguiu juntar-lhe o PS. A reacção à<br />
revolução – o 25 <strong>de</strong> Novembro – fez com que a <strong>de</strong>mocracia estabelecida em Portugal fosse<br />
minimalista e reactiva. Isto <strong>é</strong>, formal. Ou seja, sem qualquer tentativa <strong>de</strong> alargar os direitos<br />
políticos a direitos sociais, económicos e culturais, ou <strong>de</strong>ixando-os escritos e por aplicar. As<br />
condições fundamentais para o exercício da <strong>de</strong>mocracia – a educação e o esclarecimento –<br />
foram <strong>de</strong>scuradas. Per<strong>de</strong>mos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> educar e criar cidadãos e hoje isso está à vista:<br />
nas massas, isso <strong>é</strong> visível no impressionante grau <strong>de</strong> iliteracia, <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> civismo, <strong>de</strong> não<br />
interiorização das próprias regras <strong>de</strong>mocráticas, na continuação do pior familismo, do<br />
paternalismo, do patrocinato, da corrupção, da crendice e, por fim, na entrega estupidificante ao<br />
cons<strong>um</strong>ismo e à alienação mediática. Mesmo o potencial <strong>de</strong> libertação e auto-constituição que<br />
os media e o cons<strong>um</strong>o permitem foram coarctados pela entrada directa no cons<strong>um</strong>o <strong>de</strong> massas,<br />
sem passagem pelo apuramento do gosto ou da diversida<strong>de</strong>.<br />
A segunda oportunida<strong>de</strong> perdida foi a do <strong>de</strong>senvolvimento. A entrada na União Europeia, e o<br />
fluxo quer <strong>de</strong> fundos financeiros, quer <strong>de</strong> regras e i<strong>de</strong>ias, prometiam. <strong>Bem</strong> sabemos que a UE<br />
não <strong>é</strong> <strong>um</strong>a instituição <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> e que o negócio político implica muitas <strong>de</strong>svantagens para<br />
países como Portugal. Mas, caramba, não <strong>é</strong> do mais elementar bom senso pensar que os fundos<br />
po<strong>de</strong>riam ter sido aproveitados para o <strong>de</strong>senvolvimento e não apenas para o crescimento?<br />
Quando digo <strong>de</strong>senvolvimento não estou a falar dos aspectos infra-estruturais da<br />
“mo<strong>de</strong>rnização”: estradas, equipamentos, comunicações etc. Isso fez-se, nem sempre bem, mas<br />
fez-se. Estou a falar do <strong>de</strong>senvolvimento que garante superar a primeira oportunida<strong>de</strong> perdida e<br />
criar condições para os aspectos que abordarei na terceira: criar cidadãos autónomos e educados,<br />
em condições <strong>de</strong> trabalho dignas e ten<strong>de</strong>ntes à igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s. Em vez disso,<br />
vimos, <strong>um</strong>a vez mais, as elites – as velhas e as novas – apropriarem-se dos fluxos financeiros.<br />
Vimos os esquemas, os <strong>de</strong>svios. Vimos a economia a não ser reconvertida, ao contrário do que a<br />
Irlanda, por exemplo, fez, ao apostar na educação e no capital cultural em directa relação com a<br />
reconversão <strong>de</strong> <strong>um</strong>a economia <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> batatas e emigrantes em produção <strong>de</strong> informação,<br />
conhecimentos, conteúdos e toda a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> serviços “soft” que estão e estarão em <strong>de</strong>manda<br />
no mundo. As nossas estradas – on<strong>de</strong> as pessoas se matam – passam agora por campos<br />
transformados em coutadas <strong>de</strong> caça, conduzindo <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> suburbanizada em cida<strong>de</strong><br />
suburbanizada, on<strong>de</strong> vivem ex<strong>é</strong>rcitos <strong>de</strong> empregados a prazo semi-analfabetos; passam a alta<br />
velocida<strong>de</strong> jipes conduzidos por <strong>um</strong>a elite cretina que se compraze com a sua ignorância e falta<br />
<strong>de</strong> sofisticação, rindo-se <strong>de</strong> quem não <strong>é</strong> ignorante como sendo <strong>um</strong> irrealista sonhador.<br />
E a terceira oportunida<strong>de</strong> perdida foi a da igualda<strong>de</strong>. Quando finalmente os socialistas<br />
chegaram ao po<strong>de</strong>r, seria <strong>de</strong> esperar (eu sei, estou a armar-me em ing<strong>é</strong>nuo...) que, após a<br />
instauração da <strong>de</strong>mocracia e após os fluxos financeiros da UE, tiv<strong>é</strong>ssemos finalmente <strong>um</strong><br />
período <strong>de</strong> promoção da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> diminuição das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />
gritantes. Isto tinha que passar pela reforma fiscal; tinha que passar pela reforma da<br />
administração pública; tinha que passar pela criação <strong>de</strong> <strong>um</strong> Estado-providência, mesmo que em<br />
mol<strong>de</strong>s novos e adaptados a tempos que não são os do pós Segunda Guerra Mundial. Mas tinha<br />
que acontecer e era o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> <strong>um</strong> Partido Socialista. Em vez disso foi o que se viu: a primeira<br />
oportunida<strong>de</strong> não foi recuperada (a não ser em sectores marginais, como a ciência, por<br />
exemplo), e a produção <strong>de</strong> cretinos e <strong>de</strong> lambe-botas incrementou; a segunda oportunida<strong>de</strong> tão<br />
pouco – o neo-liberalismo instalou-se <strong>de</strong> vez; e a igualda<strong>de</strong> não foi promovida nas áreas do<br />
trabalho, da saú<strong>de</strong> e da segurança social, centrais para a criação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> mais justa.<br />
O resultado <strong>de</strong>stas perdas sucessivas foi o triunfo dos porcos. A extrema direita chega ao po<strong>de</strong>r<br />
porque, quando faltam outros projectos, mais cosmopolitas, racionais e progressivos, <strong>é</strong> a tontice<br />
do nacionalismo, da família e da crendice (em s<strong>um</strong>a do conservadorismo) que vêm ao <strong>de</strong> cimo.<br />
Só que <strong>de</strong>sta vez não <strong>é</strong> para construir <strong>um</strong> remanso rural-católico à moda do Salazar. Desta vez <strong>é</strong><br />
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