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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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quotidiana. Das que podia e não podia mudar. Pelo menos fiquei a “saber” – e agora sinto-me<br />

melhor. O leitor compare com a sua experiência.<br />

O trabalho <strong>é</strong> quase sempre o principal problema. Começa por ser <strong>um</strong>a questão existencial: o<br />

absurdo <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> trabalhar para ganhar dinheiro e com ele comer e cons<strong>um</strong>ir. Para isto não há<br />

resposta e não se antevê <strong>um</strong>a nos tempos mais próximos. O problema está na divisão entre a<br />

vertente rotineira e <strong>de</strong>sinteressante do trabalho e a vertente criativa. Oitenta por cento do tempo<br />

<strong>de</strong> trabalho <strong>é</strong> gasto em activida<strong>de</strong>s sem sentido: burocracia, administração, reuniões, e o que –<br />

no caso da universida<strong>de</strong> – chamamos “política acad<strong>é</strong>mica”. Um horror. Ou em aulas a mais<br />

(como constatam espantados os colegas estrangeiros): para os alunos, que estão assim na<br />

universida<strong>de</strong> como n<strong>um</strong> liceu; e para os docentes, que não po<strong>de</strong>m fazer investigação. Ambos<br />

aproveitariam melhor se usassem mais tempo a ler e a escrever. A parte mais criativa do<br />

trabalho – a investigação – em vez <strong>de</strong> exercida, <strong>é</strong> <strong>um</strong>a miragem salvífica adiada para sempre.<br />

Paradoxo: apesar <strong>de</strong> ser <strong>um</strong> dos poucos espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento, a universida<strong>de</strong> não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser <strong>um</strong>a fábrica <strong>de</strong> alienação. Chaplin podia ter rodado nela a c<strong>é</strong>lebre cena dos<br />

parafusos. O leitor compare com a sua experiência.<br />

Quanto à rotina, <strong>é</strong> como <strong>um</strong> campo minado: habituamo-nos a ver as ban<strong>de</strong>irinhas que assinalam<br />

o local das minas e sentimo-nos à vonta<strong>de</strong> nas zonas <strong>de</strong> segurança. Um dia pisamos a mina e<br />

apercebemo-nos que está <strong>de</strong>sactivada. Não explo<strong>de</strong>. Mas raramente nos passa pela cabeça<br />

transpor o cordão <strong>de</strong> segurança. Aos poucos <strong>de</strong>finhamos no doce remanso da rotina, at<strong>é</strong> que nos<br />

apercebemos, quando o S.T.R.E.S.S. ataca, que estamos meio-mortos. É pat<strong>é</strong>tico. Ao contrário<br />

do que se pensa, o mal-estar ataca quando somos pressionados a fazer coisas estúpidas, no meio<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a vida rotineira, e não no auge <strong>de</strong> <strong>um</strong> processo criativo. Com<strong>um</strong> a estas situações – e julgo<br />

que com<strong>um</strong> à vida <strong>de</strong> toda a gente – está a ausência <strong>de</strong> sentido (“meaninglessness”, em inglês, <strong>é</strong><br />

mais musical): trabalhos, relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e rotinas sem qualquer Sentido. As hipóteses <strong>de</strong><br />

exercer a criativida<strong>de</strong>, a partilha e a <strong>de</strong>scoberta são ínfimas. Para mais, a vida do dia-a-dia está<br />

cheia <strong>de</strong> situações que levam o S.T.R.E.S.S. a medrar como fungos: casas <strong>de</strong>sagradáveis,<br />

trânsito louco (virá <strong>de</strong> transe?), doenças imaginárias, famílias no fio da navalha, amores pelo<br />

telefone. Sem tempo para o essencial, já o julgamos secundário e ajudamos, assim, a reproduzir<br />

os próprios problemas que nos afectam. O leitor compare com a sua experiência.<br />

Não há nada <strong>de</strong> novo no que aqui digo. Desabafos <strong>de</strong>stes contra o lado negativo da vida<br />

mo<strong>de</strong>rna já se fazem sentir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito e a solução não <strong>é</strong> <strong>um</strong> impossível regresso à tradição<br />

(e suas grilhetas). Alg<strong>um</strong>a coisa tem sido feita para mudar a situação? Sim: a redução dos<br />

horários <strong>de</strong> trabalho, por exemplo, o a<strong>um</strong>ento da oferta <strong>de</strong> lazer, ou a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o amor <strong>é</strong> a<br />

bitola do bem-estar. Só que esta mudança traz consigo novas armadilhas: as pressões do<br />

cons<strong>um</strong>ismo e da moda, por exemplo, ou o “laissez-faire” pós-mo<strong>de</strong>rno, são tamb<strong>é</strong>m fontes da<br />

maleita <strong>de</strong> aqui me queixo. O que <strong>é</strong> possível fazer para mudar este campo <strong>de</strong> concentração ao<br />

som <strong>de</strong> violinos e encimado por <strong>um</strong>a placa que diz “Arbeit macht Frei”? Há quem consiga<br />

escapar-lhe não participando, mantendo <strong>um</strong> “low profile”, apurando posturas <strong>de</strong> bicho do mato.<br />

Fazem muito bem. Mas tamb<strong>é</strong>m há quem ache que <strong>é</strong> necessário mudar as condições <strong>de</strong> trabalho,<br />

das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e da vida do dia-a-dia. Pessoal e colectivamente. Negociar e pressionar “a<br />

la” social-<strong>de</strong>mocracia, mas sempre com <strong>um</strong> sonho radical “a la” anarquista. Se começarmos a<br />

procurar sentido para o que fazemos, <strong>de</strong>scobriremos tudo o que não faz sentido: o proverbial<br />

caixote do lixo da História há muito que tem a tampa aberta para receber o S.T.R.E.S.S.<br />

A Reacção<br />

(Público, 03.03.96)<br />

Estaremos perante <strong>um</strong>a cultura da oralida<strong>de</strong>, em que o pouco recurso à escrita <strong>de</strong>nota o pouco<br />

recurso à leitura? Estaremos perante <strong>um</strong>a fraca cidadania na quase ausência <strong>de</strong> reacções e<br />

expressão <strong>de</strong> opiniões? Estaremos perante <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> que recalca no anonimato as pulsões<br />

mais discriminatórias? Estaremos n<strong>um</strong>a cultura do “s<strong>é</strong>rio” em que o h<strong>um</strong>or se restringe à<br />

chalaça? Sobre isto tenho <strong>um</strong>a pequena amostra para vos apresentar.<br />

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