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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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<strong>de</strong> senso com<strong>um</strong>, e isso <strong>é</strong> mais perigoso. E perigoso porquê? Porque o senso com<strong>um</strong> nunca <strong>é</strong><br />

<strong>de</strong>batido, nem apresentado como proposta. A novida<strong>de</strong> da linguagem “PC” <strong>é</strong> esta: antes, a<br />

linguagem que se usava <strong>de</strong> forma consensual, acrítica, não era apresentada como <strong>um</strong> projecto<br />

nem como tendo <strong>de</strong>terminados significados, mas sim apresentada como “o que há”. Isto <strong>é</strong> muito<br />

problemático do ponto <strong>de</strong> vista social e político, porque as pessoas não têm consciência <strong>de</strong> que<br />

coisas estão a reproduzir, quando afirmam <strong>de</strong>terminadas coisas.<br />

P.I. – Um ensaista americano, no seu <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro livro, afirmava: “mais vale <strong>um</strong> homem na lua<br />

que <strong>um</strong> osso no nariz”. Quer comentar?<br />

M.V.A. – À partida <strong>é</strong> criticável. Por <strong>um</strong>a razão muito simples: se levássemos à letra essa<br />

afirmação, chegaríamos à conclusão <strong>de</strong> que <strong>é</strong> mais acessível a <strong>um</strong> ser h<strong>um</strong>ano pôr <strong>um</strong> osso no<br />

nariz do que ir à lua, don<strong>de</strong> o indivíduo que está a pôr o osso no nariz está, <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> modo, a<br />

dominar e controlar aquilo que está a fazer, sustentado por <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> significações que<br />

partilha com indivíduos da mesma cultura. Mais do que o indivíduo que vai à lua, pois este<br />

último vive <strong>um</strong>a experiência extremamente rara. Agora, <strong>de</strong> <strong>um</strong> ponto <strong>de</strong> vista mais s<strong>é</strong>rio, o que<br />

está implícito nessa afirmação <strong>é</strong> a noção <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar que <strong>é</strong> tudo igual e que<br />

nem tudo tem o mesmo valor, que tudo <strong>é</strong> <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> alternativas que não po<strong>de</strong>m ser postas<br />

em termos <strong>de</strong> melhor e <strong>de</strong> pior. Como sabem, isto <strong>é</strong> o relativismo cultural exacerbado. Eu acho<br />

que esta questão tem <strong>de</strong> ser colocada em perspectiva histórica. O relativismo cultural apareceu<br />

como proposta <strong>de</strong> interpretação do mundo por volta dos anos 20 e 30, e ganhou <strong>um</strong>a força muito<br />

gran<strong>de</strong> com <strong>um</strong> ataque <strong>de</strong>clarado às teorias <strong>de</strong> eugenia, que na altura vigoravam em gran<strong>de</strong> parte<br />

da Europa e nos Estados Unidos, das quais o nazismo <strong>é</strong> a mais trágica e ridícula formulação. O<br />

relativismo cultural <strong>de</strong>fendia a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a cultura <strong>de</strong>terminava mais as formas <strong>de</strong> funcionamento<br />

h<strong>um</strong>ano do que a biologia e, por outro lado, que não havia <strong>um</strong>a escala <strong>de</strong> progresso e <strong>de</strong><br />

comparação possível porque se analisássemos sistematicamente <strong>um</strong>a dada cultura<br />

perceberíamos que as coisas que nos parecem a nós mais bizarras faziam sentido localmente e<br />

eram funcionais, serviam para fazer coisas. <strong>Este</strong> <strong>é</strong> o relativismo cultural que interessa, porque<br />

está historicamente localizado. Depois, ele passou para níveis cada vez maiores <strong>de</strong> senso<br />

com<strong>um</strong> e <strong>de</strong> política, no sentido mais geral, ou seja, tornou-se n<strong>um</strong> princípio <strong>de</strong> organização nas<br />

socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais, atrav<strong>é</strong>s da noção <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> direitos h<strong>um</strong>anos, <strong>de</strong><br />

multiculturalismo. O problema começa quando este relativismo cultural (com cujos<br />

pressupostos eu concordo) chega a <strong>um</strong> ponto que impe<strong>de</strong> as pessoas <strong>de</strong> fazerem juízos <strong>de</strong> valor<br />

sobre a justiça ou injustiça <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas instituições ou situações. Eu cost<strong>um</strong>o exemplificar<br />

aos meus alunos esta questão, com o problema das mutilações sexuais praticadas em alg<strong>um</strong>as<br />

zonas <strong>de</strong> África. Trata-se, genericamente, <strong>de</strong> mutilações nos órgãos genitais das mulheres e significa,<br />

basicamente, na vida <strong>de</strong>ssas mulheres, <strong>um</strong>a ausência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, <strong>um</strong>a ausência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

vida erótica e sexual completa. Os “hiper-relativistas culturais” vêm dizer que isso <strong>é</strong> assim<br />

porque “faz sentido nesses contextos”; “são as próprias mães que querem que as filhas sejam<br />

mutiladas, porque ganham mais prestígio”. Eu acho que não se resolve este problema com <strong>um</strong><br />

jogo <strong>de</strong> avaliações morais <strong>de</strong> parte a parte, mas sim com outra coisa muito mais importante que<br />

<strong>é</strong> fazer <strong>um</strong>a boa investigação no terreno e que se ouçam as várias pessoas a falar. O que se tem<br />

feito <strong>de</strong> errado, não só na Antropologia mas tamb<strong>é</strong>m na Sociologia, <strong>é</strong> não ouvir o que as pessoas<br />

directamente implicadas têm para dizer, ou dar mais importância a alguns grupos sociais do que<br />

a outros. O que acontece <strong>é</strong> que quando se vai para o terreno fazer investigação verifica-se que a<br />

opinião dos próprios actores sociais <strong>de</strong>sse contexto não <strong>é</strong> uniforme. Ou seja, o que se passa <strong>é</strong><br />

que há alg<strong>um</strong>as mulheres a favor daquilo, e há alg<strong>um</strong>as que são contra aquilo; há alg<strong>um</strong>as mães<br />

que dizem que <strong>é</strong> assim que <strong>de</strong>ve ser, e outras que não; há alguns homens que concordam com a<br />

instituição, e há outros que não. O que precisamos <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o social em que<br />

reconheçamos que nunca, em sítio alg<strong>um</strong>, as pessoas concordam necessariamente com as regras<br />

segundo as quais estão a viver. Ora, o relativismo cultural exacerbado parte, então, <strong>de</strong> <strong>um</strong> erro<br />

metodológico e epistemológico, que <strong>é</strong> pensar que as culturas são coisas fechadas e uniformes,<br />

uns sistemas perfeitos <strong>de</strong> significado e <strong>de</strong> sentido on<strong>de</strong> toda a gente concorda com o que se<br />

passa em última instância. <strong>Este</strong> erro <strong>é</strong> <strong>de</strong> tal maneira flagrante que basta olhar para a nossa<br />

socieda<strong>de</strong> para ver que não <strong>é</strong> assim: 99,9% das questões são questões sobre a moralida<strong>de</strong>,<br />

culturalmente relativa. Don<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve partir do princípio <strong>de</strong> que em qualquer socieda<strong>de</strong> o<br />

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