Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Po<strong>de</strong>rei ser acusado <strong>de</strong> excesso <strong>de</strong> optimismo, mas mesmo assim atrevo-me a dizê-lo: 1997<br />
ficará para a História como o ano do arranque do movimento gay em Portugal. E isto por duas<br />
razões: a marcha da Sida em Maio (que já aconteceu) e o arraial gay do dia do “pri<strong>de</strong>” (que tem<br />
<strong>de</strong> acontecer).<br />
É claro que o verda<strong>de</strong>iro arranque foi dado muito antes. Para que os eventos tenham sucesso<br />
público e mediático e, sobretudo, sucesso <strong>de</strong> mobilização, <strong>é</strong> necessário muito trabalho “<strong>de</strong><br />
sapa”, trabalho esse <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> esforços muitas vezes individuais e <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong>nados entre si:<br />
a ILGA, a Abraço, os acad<strong>é</strong>micos que estudam as questões gay, os fazedores <strong>de</strong> opinião, at<strong>é</strong><br />
mesmo as más experiências mediáticas a que temos vindo a assistir. Tudo isto contribuiu. E<br />
sabemos quanto mais vale má publicida<strong>de</strong> do que nenh<strong>um</strong>a publicida<strong>de</strong>. Em última instância,<br />
tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa magia que acontece quando cada individuo sente que afinal há qualquer<br />
coisa <strong>de</strong> colectivo a passar-se à sua volta. Esse momento <strong>é</strong> mágico, porque <strong>é</strong> aquele em que a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e o percurso individual se unem ao percurso colectivo. O pessoal passa a político e o<br />
político <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do pessoal (nos dois sentidos da palavra).<br />
Por muitos azares que a ILGA possa vir a sofrer, as coisas nunca mais serão as mesmas. O<br />
movimento gerado nos últimos anos <strong>de</strong>itou <strong>de</strong>masiadas sementes: não se transformará n<strong>um</strong><br />
acontecimento extemporâneo com <strong>um</strong> subsequente regresso à paz podre. São <strong>de</strong>masiadas as<br />
vonta<strong>de</strong>s pessoais, os investimentos feitos e os riscos corridos – as pessoas agora querem<br />
divi<strong>de</strong>ndos. E ainda bem. Por isso a marcha da sida po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como a primeira<br />
marcha gay em Portugal. Digo isto sem qualquer ofensa: nem ao movimento <strong>de</strong> luta contra a<br />
sida, que não <strong>é</strong> só gay; nem ao movimento gay, que não po<strong>de</strong> ser acusado <strong>de</strong> oportunismo.<br />
Primeiro, porque os factos <strong>de</strong>monstram o que digo: a marcha teve <strong>de</strong>masiados símbolos gay,<br />
performances gay, cultura (sim, cultura) gay, como para po<strong>de</strong>rmos negá-lo. Em segundo lugar,<br />
porque não há nada <strong>de</strong> errado (moral ou analiticamente) em dizer que a luta contra a sida <strong>é</strong> em si<br />
mesma tamb<strong>é</strong>m <strong>um</strong>a luta por <strong>um</strong>a nova política e cultura sexuais, intimamente ligada à<br />
afirmação dos direitos <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orientação e comportamentos sexuais.<br />
Em Portugal, está visto que as coisas não po<strong>de</strong>m seguir nenh<strong>um</strong> <strong>de</strong> dois caminhos: a imitação<br />
pura e simples do que aconteceu “lá fora”, como se tiv<strong>é</strong>ssemos que recuperar tempo perdido; ou<br />
a invenção <strong>de</strong> tudo a partir <strong>de</strong> zero, como se vivêssemos n<strong>um</strong>a ilha histórica e cultural. As<br />
coisas, por cá, têm <strong>de</strong> ser todas feitas ao mesmo tempo, e n<strong>um</strong>a mistura híbrida <strong>de</strong> imitação e<br />
invenção. A nossa política gay será necessariamente <strong>um</strong>a política “crioula”. As <strong>de</strong>svantagens <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> país perif<strong>é</strong>rico, a meio caminho entre a Europa e o Terceiro Mundo, que em 20 anos passou<br />
da mais longa ditadura, a <strong>um</strong>a revolução, e a <strong>um</strong>a integração na UE, transformam-se em<br />
vantagens acrescidas para fazer política sexual <strong>de</strong> <strong>um</strong>a maneira nova.<br />
A confirmação disto que digo tem agora que passar <strong>um</strong> <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro teste: concentrar e dar vazão<br />
a todas as energias pessoais e colectivas, <strong>de</strong> raiva e alegria, protesto e celebração, entretanto<br />
ac<strong>um</strong>uladas. Ou me engano muito, ou acho que o exame está marcado para o arraial gay <strong>de</strong> 28<br />
<strong>de</strong> Junho. Aí se afirmará <strong>um</strong> espaço gay em si mesmo, mas aberto à cida<strong>de</strong> e à socieda<strong>de</strong><br />
(incluído nas festas <strong>de</strong> Lisboa); aí se afirmará <strong>um</strong>a ligação transnacional (os “pri<strong>de</strong>s” das nossas<br />
cida<strong>de</strong>s míticas) e <strong>um</strong>a reinvenção nacional (a cultura do arraial, e <strong>de</strong>sta feita no Príncipe Real);<br />
aí se dará a união entre o universo particularista da “velha” cultura gay portuguesa (os bares, por<br />
exemplo) e a “nova”, vinda do movimento rec<strong>é</strong>m-iniciado e da energia dos mais jovens que já<br />
andam a pedir outra maneira <strong>de</strong> ser gay em Portugal.<br />
Ladies and gentlemen (and all those in between): estamos a ver a História acontecer. E sabem<br />
que mais? Somos nós que a estamos a fazer. Se não <strong>de</strong>itarmos a per<strong>de</strong>r a oportunida<strong>de</strong>, seremos<br />
mesmo príncipes (e princesas) reais. Maquiav<strong>é</strong>licos e ing<strong>é</strong>nuos q.b. (E agora dêem graças aos<br />
<strong>de</strong>uses por me terem apanhado n<strong>um</strong> dia <strong>de</strong> pensamento positivo).<br />
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