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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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Felizmente estamos nos anos noventa e em Portugal, Europa. Infelizmente, começa a ser<br />

possível imaginar <strong>um</strong>a situação <strong>de</strong> conflito neste país em que as causas – supostas ou reais-<br />

sejam o futebol. Quando hoje se diz que já <strong>é</strong> tempo <strong>de</strong> separar o futebol da política, está-se a<br />

cometer <strong>um</strong> pequeno erro, pois o futebol e a política só agora começam a imiscuir-se<br />

mutuamente <strong>de</strong> forma perigosa. Para a <strong>de</strong>mocracia e para o quotidiano das pessoas.<br />

Quando eu era criança, havia as pessoas que gostavam <strong>de</strong> futebol e as que não gostavam. Era<br />

assim como gostar ou não <strong>de</strong> sardinhas. Nem os que gostavam perturbavam os outros, nem estes<br />

se sentiam asfixiados pelo gosto alheio. Hoje – isto <strong>é</strong>, sobretudo nos últimos <strong>de</strong>z anos – o<br />

futebol está em toda a parte, como a “política” nos anos logo a seguir ao 25 <strong>de</strong> Abril. Toda a<br />

gente fala <strong>de</strong> futebol, diz a que clube pertence, e <strong>é</strong> suposta ter escolhido <strong>um</strong>a “cor”. Os<br />

noticiários já não colocam o futebol n<strong>um</strong>a secção à parte, no final dos alinhamentos; ele surge<br />

lado a lado com as notícias políticas.<br />

Não interessa aqui <strong>de</strong>finir o que significa as pessoas a<strong>de</strong>rirem a esses “grupos <strong>é</strong>tnicos <strong>de</strong> livre<br />

escolha” que são os clubes. Interessa, sim, ver at<strong>é</strong> que ponto essa lógica perverte o<br />

funcionamento do sistema <strong>de</strong>mocrático. A promiscuida<strong>de</strong> entre dirigentes clubísticos e<br />

dirigentes políticos <strong>é</strong> já conhecida; mas estamos a aceitá-la com <strong>de</strong>masiada facilida<strong>de</strong>. <strong>Este</strong><br />

problema real <strong>é</strong> escamoteado com as diversas histerias que se geram em torno do futebol:<br />

violência nos estádios, claques e hooliganismo, venda <strong>de</strong> escravos (perdão, <strong>de</strong> jogadores),<br />

criação <strong>de</strong> ídolos masculinos. E por essa re<strong>de</strong>nção <strong>de</strong> todos os pecados futebolísticos que <strong>é</strong> a<br />

selecção nacional como a última instituição que ainda representa o Estados-nação .<br />

É com a lei do perdão fiscal aos clubes que nos aproximamos <strong>de</strong> El Salvador e Honduras e<br />

regredimos à insanida<strong>de</strong> dos anos sessenta. Terá António Guterres tomado alucinog<strong>é</strong>neos?<br />

Estarão os dirigentes <strong>de</strong> clubes a fazer love-ins clan<strong>de</strong>stinos em quintas minhotas? Ou estarão<br />

conspirando, <strong>de</strong> carapuço na cabeça, em apartamentos suburbanos? Seja como for, a realida<strong>de</strong> <strong>é</strong><br />

esta: quando os clubes <strong>de</strong> futebol são agraciados com <strong>um</strong> presente <strong>de</strong>stes, retirado dos bolsos<br />

dos cidadãos, só po<strong>de</strong> ser porque têm <strong>um</strong> enorme po<strong>de</strong>r. Básico. E se têm <strong>um</strong> enorme po<strong>de</strong>r,<br />

on<strong>de</strong> está o controlo sobre ele? Em parte nenh<strong>um</strong>a, <strong>um</strong>a vez que os clubes não são (legalmente)<br />

partidos, não concorrem (legalmente) a eleições e não prestam contas a ningu<strong>é</strong>m. Prestavam: ao<br />

Estado e ao fisco. Mas, pelos vistos, agora já não prestam.<br />

Quando Guterres cai nesta armadilha, apercebemo-nos que a sua sincerida<strong>de</strong> (que creio ser,<br />

ainda, genuína) ajuda-nos a perceber melhor o que <strong>de</strong> insano se passa com o nosso regime. O<br />

entusiasmo da política foi substituído pelo entusiasmo do futebol porque a política está fora do<br />

controlo dos cidadãos. Nos clubes, pelo menos os sócios (temos mais “sócios” que “cidadãos”)<br />

têm a ilusão <strong>de</strong> participar nas tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões; e o jogo <strong>de</strong> “frisson” com a sorte e o azar, o<br />

<strong>de</strong>stino e o <strong>de</strong>sfecho das disputas está ritualizado nos campeonatos, que <strong>um</strong>a vez acabados<br />

começam sempre outra vez. O futebol ocupa o espaço imaginário do possível da participação<br />

das pessoas. N<strong>um</strong> eterno retorno cíclico, mais pacificador do que o complicado processo<br />

histórico que a política implica. A política morreu. E o governo <strong>de</strong> Guterres ajudou a enterrá-la.<br />

Um dia este país será governado pelos clubes; as eleições serão <strong>um</strong> mero totobola. A selecção<br />

nacional c<strong>um</strong>prirá as funções simbólicas do governo. Os clubes serão os partidos. E quando a<br />

alienação económica do país for completa, assim como a alienação dos cidadãos feitos<br />

(tele)espectadores <strong>de</strong> futebol, qualquer conflito será <strong>um</strong>a “guerra do futebol”. Como na Am<strong>é</strong>rica<br />

Central nos anos sessenta. Só falta Guterres mudar o nome para Gutierrez e o projecto bananeiro<br />

da República estará completo.<br />

Sobreviver<br />

(Público, 16.06.96)<br />

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