13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Há anos que cultivo com prazer masoquista os meus ódios <strong>de</strong> estimação. Coisas <strong>de</strong> somenos:<br />

carros estacionados em cima dos passeios, ter que escrever “Exmo Sr. Prof. Dr.” em cartas, ou<br />

ler notícias <strong>de</strong> futebol nas primeiras páginas dos jornais. Ultimamente fui assaltado por mais<br />

<strong>um</strong>a alergia: as socieda<strong>de</strong>s secretas. Chamemos os bois (os bois?) pelos nomes: a Maçonaria e a<br />

Opus Dei. Mais discreta a última, certamente graças a <strong>um</strong>a <strong>é</strong>tica <strong>de</strong> sacristia, mais trapalhona a<br />

primeira, ou não fosse originalmente <strong>de</strong> “esquerda”.<br />

A irritação começa por ser <strong>um</strong>a coisa <strong>de</strong> pele. Imagino rituaizinhos secretos, encontros pela<br />

calada da noite, retiros, alg<strong>um</strong>a piroseira esot<strong>é</strong>rica e, sobretudo, vestimentas <strong>de</strong> guarda-roupa <strong>de</strong><br />

s<strong>é</strong>rie B. Se dos escuteiros se diz serem “meninos vestidos <strong>de</strong> parvos conduzidos por <strong>um</strong> parvo<br />

vestido <strong>de</strong> menino”, imagine-se a aplicação <strong>de</strong>ste princípio às socieda<strong>de</strong>s secretas. Mas<br />

reconheço (a custo) que “gostos não se discutem”, e a embirração tem mais matizes. É que as<br />

socieda<strong>de</strong>s secretas são da mesma or<strong>de</strong>m que os clubes <strong>de</strong> rapazes. São <strong>um</strong>a coisa “<strong>de</strong> rapazes”,<br />

apesar das mulheres simbólicas que vão admitindo no seu seio. E as coisas <strong>de</strong> rapazes são<br />

tremendas: por <strong>um</strong> lado são quase sempre tolas, infantis, fascinadas com o ritual, a or<strong>de</strong>m, a<br />

hierarquia. Por outro, são quase sempre perigosas. D<strong>um</strong> lado o Clube do Bolinha, do outro o Ku<br />

Klux Klan.<br />

Uma análise mais cuidada das socieda<strong>de</strong>s secretas, todavia, revela que não se está perante uns<br />

rapazes quaisquer. Trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> certo tipo <strong>de</strong> rapazes: bem na vida e ligados às leis, aos<br />

dinheiros e aos mandares. O triângulo dourado do po<strong>de</strong>r – direito, economia, política – parece<br />

dominar as filiais portuguesas do Clube do Bolinha. De repente, a irritação <strong>de</strong> pele dá lugar a<br />

preocupação. O ódio <strong>de</strong> estimação dá lugar a coisas mais s<strong>é</strong>rias. É claro que o secretismo não <strong>é</strong><br />

mau em si mesmo. Durante <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, o Partido Comunista funcionou na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong><br />

porque se vivia n<strong>um</strong>a ditadura; o partidão não andava a brincar às socieda<strong>de</strong>s secretas. Acontece<br />

que agora vivemos em <strong>de</strong>mocracia e Estado <strong>de</strong> direito. Temos as instituições e as liberda<strong>de</strong>s que<br />

permitem a expressão <strong>de</strong> opiniões, a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> injustiças e a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> causas nobres. Para<br />

impedir a coincineração em Souselas não foi preciso criar <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> secreta. Foi preciso<br />

sair à rua. A pergunta que se coloca <strong>é</strong>, pois, singela: para que servem, hoje, as socieda<strong>de</strong>s<br />

secretas?<br />

Consi<strong>de</strong>rando a sua natureza e a sua composição, elas só po<strong>de</strong>m servir para <strong>um</strong>a coisa: para<br />

perpetuar aquilo que a <strong>de</strong>mocracia e o Estado <strong>de</strong> direito dizem já não ser necessário.<br />

Simplifiquemos: n<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> totalitária (ou n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>mocracia d<strong>é</strong>bil e falseada) os grupos e<br />

as pessoas não conseguem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os seus interesses por m<strong>é</strong>todos transparentes. Recorrem,<br />

então, a velhas instituições como o parentesco, a amiza<strong>de</strong>, o compadrio. Estas po<strong>de</strong>m ser<br />

relativamente simpáticas e informais ou tornar-se tenebrosas: as mafias e as tría<strong>de</strong>s mais não são<br />

do que extensões <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parentesco e clientelismo. Fora do controlo do Estado e dos<br />

cidadãos, escudadas pela intimida<strong>de</strong> das conversas <strong>de</strong> família à volta da lareira ou das charlas <strong>de</strong><br />

clube à volta do brandy, as mafias (inocentes à maneira do Bolinha ou cru<strong>é</strong>is à maneira<br />

siciliana) obtêm o que querem e mais <strong>de</strong>pressa, com menos custos e sem salamaleques à<br />

legalida<strong>de</strong>. Desconfio sempre que as socieda<strong>de</strong>s secretas, em <strong>de</strong>mocracia, servem para isso<br />

mesmo. Permitem manter as re<strong>de</strong>s informais. Permitem que os negócios avancem mais<br />

<strong>de</strong>pressa. Permitem que a influência seja mais eficaz. Ao mesmo tempo que a fantasia<br />

<strong>de</strong>mocrática e do Estado <strong>de</strong> direito vai funcionando “lá fora”, muitas vezes protagonizada pelos<br />

mesmos que pertencem à socieda<strong>de</strong> secreta. Só nos resta <strong>um</strong>a esperança: como os rapazes são<br />

muito dados às zangas e às questões <strong>de</strong> honra; como os interesses do direito, do dinheiro e da<br />

política nem sempre coinci<strong>de</strong>m; e como todo o rapaz que se preze quer mandar nos outros, o<br />

resultado <strong>é</strong> que às vezes a bagunça no clube <strong>é</strong> tal que se ouve cá fora. Falta-nos, por<strong>é</strong>m, <strong>um</strong>a<br />

mãe com autorida<strong>de</strong> suficiente para os pôr na or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>pois acalmá-los com limonada e biscoitos.<br />

Antes que dêem cabo da vizinhança.<br />

A guerra dos votos<br />

(“Diário <strong>de</strong> Notícias”, 09.06.99)<br />

180

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!