Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
MVA – Podia. Mas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>um</strong> jornalismo <strong>de</strong> autor, on<strong>de</strong> se tomam posições. Eu tomo ali<br />
muitas posições, alg<strong>um</strong>as explícitas, em termos <strong>de</strong> textos, outras no modo como construo a<br />
história. São opções que têm a ver com a forma como vejo o mundo. O que ali <strong>é</strong> mais<br />
antropológico <strong>é</strong> o lado reflexivo das coisas, e os <strong>de</strong>poimentos que só são possíveis por existir<br />
<strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> campo prolongado, que permite a criação <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> confiança. Isso só po<strong>de</strong><br />
acontecer n<strong>um</strong> bom jornalismo <strong>de</strong> investigação.<br />
DN – No doc<strong>um</strong>entário, opõe-se à tese do suave colonialismo português. Ainda assim, teve o<br />
apoio da Comissão dos Descobrimentos. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curioso...<br />
MVA – E problemático para <strong>um</strong> antropólogo. Tenho colegas que recusariam liminarmente a<br />
hipótese <strong>de</strong> pedir dinheiro à comissão. Mas aqui há duas coisas: o dinheiro da comissão vem a<br />
posteriori, e por isso o trabalho não estava contaminado pelo financiador (risos), e <strong>de</strong>pois,<br />
verda<strong>de</strong> seja dita, a Comissão dos Descobrimentos, at<strong>é</strong> agora, tem conseguido fazer <strong>um</strong>a<br />
ginástica fantástica. Ela teve que lidar com o discurso nacionalista por excelência em Portugal –<br />
<strong>um</strong> dogma intocável – e conseguiu ter <strong>um</strong>a abertura i<strong>de</strong>ológica bastante gran<strong>de</strong>. Isso <strong>é</strong> <strong>um</strong> bom<br />
sinal. Aliás, o trabalho da comissão portuguesa <strong>é</strong> muito mais progressista que o da brasileira.<br />
Não <strong>é</strong> por acaso que esta está a ter imensa resistência por parte dos movimentos negro e<br />
indígena no Brasil, que certamente vão dar cabo – e eu acho muito bem – das celebrações.<br />
DN – Há alg<strong>um</strong>a coisa para celebrar?<br />
MVA – Não. Não há mesmo. O que há <strong>é</strong> <strong>um</strong>a boa oportunida<strong>de</strong> histórica para produzir certo<br />
tipo <strong>de</strong> conhecimento, ao nível da investigação e da divulgação. Quanto a fazer i<strong>de</strong>ologia contra<br />
a realida<strong>de</strong>, isso eu acho p<strong>é</strong>ssimo<br />
DN – Ficou contente com o resultado final do doc<strong>um</strong>entário?<br />
MVA – Nunca fico contente com o resultado <strong>de</strong> nada. Fico apenas contente quando as coisas<br />
estão terminadas. Mas tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer outro doc<strong>um</strong>entário.<br />
DN – Vai vendê-lo às televisões?<br />
MVA – Isso <strong>é</strong> com a produtora, mas acho que ela está a pensar nisso.<br />
Caixa:<br />
DN – Por que razão escolheu, como tema <strong>de</strong> investigação, a emergência dos novos movimentos<br />
negros na Baía? Parece ter pouco a ver com os seus trabalhos anteriores.<br />
MVA – Na parte escrita do trabalho vai-se perceber que não <strong>é</strong> tanto assim. As coisas que fiz<br />
antes, sobre g<strong>é</strong>nero e sexualida<strong>de</strong>, eram <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> pensar aquilo a que chamamos a<br />
“naturalização do po<strong>de</strong>r”, ou seja, a forma corpo as relações entre grupos e pessoas são<br />
estabelecidas com base em atributos físicos – ser homem ou ser mulher, ser branco ou ser preto<br />
-, que não têm nada a ver com as suas aptidões para ocupar <strong>de</strong>terminados lugares. Quando<br />
esgotei o tema do g<strong>é</strong>nero e da sexualida<strong>de</strong>, senti que podia mudar <strong>de</strong> campo e continuar com a<br />
mesma preocupação teórica. As questões da raça, muito actuais hoje em dia, eram <strong>um</strong> caminho<br />
a seguir.<br />
DN – Partiu <strong>de</strong> <strong>um</strong>a hipótese forte?<br />
MVA – Nós trabalhamos com várias hipóteses. Uma <strong>é</strong> <strong>um</strong>a premissa <strong>de</strong> fundo, <strong>um</strong>a crença<br />
minha, que <strong>é</strong> a <strong>de</strong> que a raça, pura e simplesmente, não existe. A raça <strong>é</strong> <strong>um</strong> processo <strong>de</strong><br />
atribuição <strong>de</strong> sentido e <strong>de</strong> lugares sociais a grupos <strong>de</strong> pessoas. Depois, colocava duas hipóteses.<br />
Primeiro, que a emergência do movimento negro em Ilh<strong>é</strong>us <strong>de</strong>veria lidar com <strong>um</strong>a imagem<br />
construída – pela fantasia e pela imaginação – <strong>de</strong> África e da africanida<strong>de</strong>. Segundo, que os produtos<br />
culturais – a dança, a música, o Carnaval – po<strong>de</strong>riam ser formas <strong>de</strong> afirmação <strong>é</strong>tnica e <strong>de</strong><br />
conquista do espaço público, indispensáveis quando faltam os recursos financeiros e políticos.<br />
DN – A cultura, portanto, como <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> fazer política.<br />
248