Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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coisas acalmaram com o começo do Verão, e chegou a hora da vingança. De <strong>um</strong>a assentada fui<br />
ver “F<strong>um</strong>o” e “F<strong>um</strong>o Azul”, os dois filmes <strong>de</strong> Wayne Wang. Confesso que não distingo os<br />
nomes chineses. Tinha tido <strong>um</strong>a boa experiência com “O Banquete <strong>de</strong> Casamento” <strong>de</strong> Ang Lee<br />
e <strong>um</strong>a p<strong>é</strong>ssima experiência com <strong>um</strong> filme <strong>de</strong> Hong Kong chamado o “Expresso <strong>de</strong> não-sei-quê”.<br />
<strong>Este</strong> último foi louvado pelos críticos. “F<strong>um</strong>o” e “F<strong>um</strong>o Azul” são corridos a suficiente mais.<br />
Coisas da vida.<br />
Os dois filmes reconciliaram-me com o cinema que se vai fazendo, com a narrativa<br />
contemporânea, com a Am<strong>é</strong>rica. Dos anos que vivi nos Estados Unidos guardo a recordação <strong>de</strong><br />
três Am<strong>é</strong>ricas <strong>de</strong>sagradáveis. A primeira <strong>é</strong> a da classe alta branca, dos col<strong>é</strong>gios privados, dos<br />
queques locais com os seus mocassins, camisas polo e BMWs e a obsessão, à beira da histeria,<br />
com os sinais <strong>de</strong> classe e o perigo constante dos seus <strong>de</strong>svios. A segunda <strong>é</strong> a Am<strong>é</strong>rica da imensa<br />
classe m<strong>é</strong>dia dos subúrbios. Já foi muito castigada no cinema e na literatura, mas tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> o<br />
mo<strong>de</strong>lo por <strong>de</strong>feito que nos surge na TV todos os dias: puritana e cons<strong>um</strong>ista, ignorante e<br />
afluente, <strong>é</strong> <strong>um</strong> mundo <strong>de</strong> casas sem cinzeiros e mães que não conseguem beijar os filhos – e isso<br />
diz tudo. A terceira (aviso: o que se segue <strong>é</strong> politicamente incorrecto) <strong>é</strong> a Am<strong>é</strong>rica da cultura<br />
negra urbana, fechada sobre si mesma, ritualista at<strong>é</strong> dizer basta, separacionista ao ponto <strong>de</strong> se<br />
odiar a si mesma.<br />
A Brooklyn <strong>de</strong> “F<strong>um</strong>o” e “F<strong>um</strong>o Azul” mostra <strong>um</strong>a outra Am<strong>é</strong>rica. A classe alta branca não<br />
existe ali e nem imagina que aquilo ali existe; a classe m<strong>é</strong>dia suburbana só ouviu falar <strong>de</strong><br />
Brooklyn na televisão, imaginando <strong>um</strong> mundo <strong>de</strong> tiroteio constante, enquanto limpa a pistola<br />
que guarda no armário por cima do lava-loiças; a Afro-Am<strong>é</strong>rica separacionista não quer saber<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> mundo pluricultural (Spike Lee terá gostado <strong>de</strong>stes filmes?). Alg<strong>um</strong>as das melhores<br />
coisas da Am<strong>é</strong>rica estão preservadas nesta Brooklyn <strong>de</strong> celulói<strong>de</strong>: a vizinhança e a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> comunicação. Mas estão-no em estado <strong>de</strong> tensão, <strong>de</strong> ebulição, diálogo e confronto, que <strong>é</strong> o<br />
seu melhor estado. Não o estão por obrigação social, <strong>é</strong>tica protestante ou para manter as<br />
aparências. Estas pessoas gritam, insultam-se, entrechocam-se, mas <strong>de</strong>las transpira <strong>um</strong>a intensa<br />
h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. Indivíduos, culturas e comunida<strong>de</strong> citadina caminham pelo fio da navalha – a<br />
condição do que <strong>de</strong> melhor têm as civilizações urbanas.<br />
<strong>Este</strong> <strong>é</strong> o cinema dos nossos tempos. O cinema que olha para si próprio com mod<strong>é</strong>stia. O cinema<br />
que, quando o seu olhar <strong>de</strong>para com o <strong>um</strong>bigo, em vez <strong>de</strong> ver nele <strong>um</strong> buraco vertiginoso,<br />
imagina o cordão <strong>um</strong>bilical que liga <strong>um</strong>a pessoa a outra, e esta a outra ainda e por aí fora at<strong>é</strong> à<br />
comunida<strong>de</strong> dos <strong>um</strong>bigos. Faço <strong>um</strong> esforço <strong>de</strong> memória e não consigo encontrar <strong>um</strong> filme<br />
português que tenha conseguido dar a imagem equivalente <strong>de</strong> Lisboa e das suas pessoas. Faço<br />
<strong>um</strong> esforço <strong>de</strong> memória e não consigo encontrar <strong>um</strong> livro ou <strong>um</strong> guião português que tenha<br />
conseguido servir <strong>de</strong> base para esse filme inexistente.<br />
O que se encontra <strong>é</strong> invariavelmente <strong>um</strong>a <strong>de</strong> quatro coisas. Primeiro, as estafadas reflexões<br />
sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, a portugalida<strong>de</strong>, a sauda<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntismo. Segundo, as estafadas<br />
secas sobre <strong>um</strong>a ruralida<strong>de</strong> mitificada, cheia <strong>de</strong> tradições “genuínas”, populares repletos <strong>de</strong><br />
“sabedoria”, contemplações sobre os “ritmos lentos” e os “tempos cíclicos” do Portugal<br />
supostamente profundo. Terceiro, os sarcasmos em torno do popularucho, tipo Holywood em<br />
Alfama. Por fim, imitações apressadas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los estrangeiros <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> nocturna,<br />
marginal, com túneis, yuppies e droga, como se Lisboa fosse <strong>um</strong> con<strong>de</strong>nsado das capitais<br />
cosmopolitas sob <strong>um</strong> c<strong>é</strong>u semi-tropical. Só há duas explicações possíveis: ou a realida<strong>de</strong><br />
portuguesa e lisboeta não <strong>é</strong> h<strong>um</strong>ana e complexa, ou os cine-artistas portugueses não a sabem<br />
ver, ouvir e sentir (ou não são artistas, mas essa hipótese <strong>é</strong> mázinha).<br />
Com os filmes <strong>de</strong> Wayne Wang ficamos entusiasmados com a “sujida<strong>de</strong>” h<strong>um</strong>ana. Com a maior<br />
parte dos filmes nacionais, tudo se esf<strong>um</strong>a ao saír da sala. Algu<strong>é</strong>m sabe dizer porquê?<br />
Uniões <strong>de</strong> Facto I<br />
201