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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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(Público, 22.04.00)<br />

1.Há poucos dias, em Salvador, na Bahia, o relógio da contagem <strong>de</strong>crescente para o 22 <strong>de</strong> Abril<br />

estava parado e indicava que faltavam setecentos e tal dias. Saí no dia em que a Sagres ia<br />

chegar. Achei que era simbólico e a coisa mais <strong>de</strong>cente a fazer. À chegada a Lisboa, o taxista<br />

fala das mulatas que gostaria <strong>de</strong> conhecer biblicamente se fosse ao Brasil e <strong>de</strong> como lá (“ou em<br />

Angola, ou Moçambique”, para ele era o mesmo) po<strong>de</strong>ria enriquecer, pois aqui os “gran<strong>de</strong>s<br />

comem tudo e não <strong>de</strong>ixam comer”. Será que este país não muda?<br />

2.Qualquer comemoração <strong>é</strong> feita no presente e para o presente e as comemorações das Histórias<br />

nacionais facilmente <strong>de</strong>slizam para o nacionalismo. No Brasil celebram-se os 500 anos do país,<br />

a partir do pretexto do achamento, <strong>de</strong>scobrimento ou invasão. Por isso a ocasião <strong>é</strong> propícia aos<br />

balanços e às disputas em torno do futuro da nação. Disso se encarregaram indígenas, negros e<br />

sem-terra, à revelia <strong>de</strong> Brasília. Em Portugal celebram-se, muito especificamente, os 500 anos<br />

do <strong>de</strong>scobrimento do Brasil, no quadro <strong>de</strong> <strong>um</strong> ciclo comemorativo em que, salvo honrosas<br />

excepções, não vingou <strong>um</strong>a perspectiva crítica. Vinte e cinco anos <strong>de</strong>pois do 25 <strong>de</strong> Abril e do<br />

fim do colonialismo, recaímos na obsessão i<strong>de</strong>ntitária com a “gesta” do passado.<br />

3.Brasil e Portugal têm sem dúvida <strong>um</strong>a História com<strong>um</strong>. Não têm <strong>um</strong> presente com<strong>um</strong>. Essa<br />

história não se res<strong>um</strong>e ao mítico dia em que Cabral aportou na hoje horripilante estância<br />

turística <strong>de</strong> Porto Seguro. Ela fez-se à medida que se construiu <strong>um</strong> mundo luso-brasileiro<br />

assente na escravatura, na subordinação da África “portuguesa”, na construção <strong>de</strong> <strong>um</strong> Brasil <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e raciais e <strong>de</strong> <strong>um</strong> Portugal <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos tráficos atlânticos. Esse mundo<br />

viria a ruir, conduzindo ambos os países para a subalternida<strong>de</strong>. No caso português insistiu-se em<br />

mais do mesmo, com a tentativa <strong>de</strong> criar Brasis em África. Mas as elites <strong>de</strong> ambos os países<br />

construiram <strong>um</strong>a narrativa mítica – que se consubstanciaria no lusotropicalismo do período do<br />

Estado Novo brasileiro e do colonialismo português <strong>de</strong> Salazar-Caetano – assente na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

não-racismo e miscigenação feliz, <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> essencial portuguesa para a criação <strong>de</strong> paraísos<br />

h<strong>um</strong>anistas e do Brasil como epítome <strong>de</strong>sse processo. Os sensos comuns <strong>de</strong> ambos os países<br />

ainda se alimentam <strong>de</strong>sta retórica. E as comemorações não têm servido muito para a contradizer<br />

ou <strong>de</strong>smistificar. É que <strong>um</strong>a coisa <strong>é</strong> reconhecer especificida<strong>de</strong>s, outra subscrever<br />

excepcionalismos.<br />

4.No Brasil, todavia, interessantes movimentações têm surgido na socieda<strong>de</strong> civil. Do<br />

movimento dos sem-terra à emergência <strong>de</strong> <strong>um</strong> movimento negro, passando pelo renascimento<br />

indígena, os grupos subalternizados têm vindo a construir i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que são alavancas da<br />

contestação social e política. Para eles, a mitologia que <strong>é</strong> ensinada às crianças brasileiras e<br />

portuguesas não faz sentido. É certo – e compreensível – que às vezes caem em novos<br />

essencialismos ou em novas interpretações abusivas da História. Mas o que interessa <strong>é</strong> que a<br />

razão está do seu lado, pois eles são os que no presente mais sentem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar as<br />

condições para a construção do futuro. O Brasil não precisa <strong>de</strong> Portugal para isso. E Portugal<br />

<strong>de</strong>veria parar <strong>de</strong> mitificar o Brasil se quiser construir-se como país que acarinha a diferença e<br />

combate a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>.<br />

5.Em Portugal assistimos a <strong>um</strong>a reconfiguração pós-colonial da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Ela tem sido lenta e<br />

ambígua, em parte porque a política comemorativista tem cerceado o seu potencial crítico. Em<br />

vez <strong>de</strong> abraçarmos <strong>um</strong> hibridismo e <strong>um</strong> multiculturalismo propositivos, refugiamo-nos na<br />

reciclagem <strong>de</strong> velhas i<strong>de</strong>ias e confortamo-nos com o mito <strong>de</strong> que criámos, no passado, esse<br />

mesmo hibridismo e multiculturalismo. Esta atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> avestruz permite elidir <strong>de</strong> vez os<br />

alicerces <strong>de</strong> toda a “gesta”: a invasão do Brasil indígena, o papel pioneiro no tráfico <strong>de</strong> escravos<br />

e a reincidência do colonialismo em África no s<strong>é</strong>culo XX, incluindo, entre outras preciosida<strong>de</strong>s,<br />

anos <strong>de</strong> guerra colonial. Um certo espírito bem-pensante tenta passar o verniz da conciliação<br />

sobre tudo isto: CPLPs, Lusofonias, Comemorações têm por efeito dar sustentação discursiva às<br />

alianças <strong>de</strong> elites locais em busca <strong>de</strong> <strong>um</strong> lugar <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> protagonismo na cena global em<br />

acelerada reconfiguração.<br />

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