13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Algures em Nova Iorque ou Londres (está bem, às vezes Lisboa…) há pessoas que hibridizam a<br />

s<strong>é</strong>rio, são felizes e contaminam os outros <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Mas a maioria <strong>de</strong> nós – pós-mo<strong>de</strong>rnos<br />

fragmentados – ou não consegue juntar os cacos e produzir <strong>um</strong>a coisa nova e única, ou continua<br />

a olhar para a etiqueta. Catalogadinhos e sentados no sofá, contemplamos embevecidos a beleza<br />

<strong>de</strong> Keanu Reeves ou a ousadia <strong>de</strong> K.D. Lang. O sentimento <strong>de</strong> “transporte” que sentimos <strong>é</strong> tanto<br />

maior quanto maior a nossa distância <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo. É pena. Talvez, no fundo, a mudança se<br />

faça <strong>de</strong> pequenas coisas – como <strong>um</strong> taxista que me transportou outro dia e que, em vez <strong>de</strong> me<br />

atormentar com o futebol ou dizer mal das mulheres ao volante, ouvia música clássica a altos<br />

berros.<br />

Sebastião<br />

(Revista Ícon, 11.00)<br />

Roma Antiga. Um jovem alista-se no ex<strong>é</strong>rcito. Cai nas boas graças do imperador Diocleciano<br />

at<strong>é</strong> que algu<strong>é</strong>m o <strong>de</strong>nuncia como cristão. Imagine-se a <strong>de</strong>silusão: <strong>um</strong> dos favoritos do imperador<br />

havia, afinal, a<strong>de</strong>rido à absurda teoria igualitária do cristianismo. Provando quanto o afecto se<br />

po<strong>de</strong> transformar em raiva, o imperador or<strong>de</strong>na que o trespassem com setas, amarrado a <strong>um</strong><br />

poste. Dado por morto, <strong>um</strong>a caridosa cristã, <strong>de</strong> nome Irene, vai buscar o corpo para o sepultar.<br />

Mas Sebastião não havia morrido com as setas e Irene acolhe-o em casa, on<strong>de</strong> lhe trata as<br />

feridas, não conseguindo impedir o jovem i<strong>de</strong>alista <strong>de</strong> se confrontar com o imperador. Sebastião<br />

conhece então a morte pela segunda vez: <strong>é</strong> açoitado at<strong>é</strong> falecer e jogado para a cloaca máxima.<br />

Mas <strong>um</strong>a outra cristã, Lucina, vê-o em sonhos. O jovem soldado ter-lhe-á dito que ela<br />

encontraria o seu corpo perto do circo, pendurado <strong>de</strong> <strong>um</strong> gancho, intocado pela imundície e que<br />

<strong>de</strong>veria sepultá-lo nas catac<strong>um</strong>bas, perto dos restos dos Apóstolos.<br />

Sebastião tornar-se-ia, pois, n<strong>um</strong> santo da Igreja Católica Romana. Padroeiro da peste, do gado<br />

ou da guerra, consoante os contextos, po<strong>de</strong>mos encontrá-lo nos altares das igrejas, nas<br />

procissões, como orago <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s e como festejado em romarias.<br />

Mas ele tornou-se em algo mais. Em símbolo e veículo <strong>de</strong> outros sentimentos e outras est<strong>é</strong>ticas.<br />

Mishima viria a <strong>de</strong>ixar-se fotografar como S. Sebastião. Derek Jarman <strong>de</strong>dicar-lhe-ia <strong>um</strong> filme.<br />

Um pouco como a sua morte na cloaca foi esquecida a favor do primeiro martírio com as setas.<br />

Esquecido tamb<strong>é</strong>m o acrescento – tardio – do episódio <strong>de</strong> Irene, o que <strong>de</strong>le se reteve foi,<br />

sobretudo, esta imagem: <strong>um</strong> homem jovem, quase nu, atado a <strong>um</strong> poste, cravejado <strong>de</strong> setas,<br />

expressando <strong>um</strong>a agonia que po<strong>de</strong> ser interpretada como prazer. É sem dúvida esta imagem<br />

carregada <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> que atraiu a atenção <strong>de</strong> inúmeros pintores. O sacrifício do corpo – a<br />

eucaristia – <strong>é</strong> <strong>um</strong> pilar da crença cristã. E as relações entre esta e a vivência oci<strong>de</strong>ntal da<br />

sexualida<strong>de</strong> não se res<strong>um</strong>em à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a primeira reprime a segunda. Ela tamb<strong>é</strong>m a forma,<br />

dá-lhe contornos, <strong>de</strong>fine o <strong>de</strong>sejo. Das representações renascentistas, centradas na h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong><br />

dos corpos e na corporalida<strong>de</strong> dos h<strong>um</strong>anos, at<strong>é</strong> ao fascínio homoerótico e sado-masoquista com<br />

a iconografia <strong>de</strong> Sebastião, as suas imagens são <strong>um</strong> con<strong>de</strong>nsado da nossa relação entre<br />

espiritualida<strong>de</strong> e sexualida<strong>de</strong>. De facto, da sua inseparabilida<strong>de</strong>.<br />

IMAGENS: Cruzeiro (Seixas, Caminha); Pintura mural (Cabrália, Bahia); Botticelli (1440-<br />

1510); Mantegna (1432-1506); Guido Reni (c 1615); Peter Paul Rubens (c 1615); Shinoyama e<br />

Mishima (1966); Pierre et Gilles (1987).<br />

F<strong>um</strong>o<br />

(in<strong>é</strong>dito)<br />

Uma vida estúpida, ocupada com o lado “fábrica <strong>de</strong> encher chouriços” que a universida<strong>de</strong><br />

ass<strong>um</strong>e (cada vez mais), impediu-me <strong>de</strong> ir ao cinema com a frequência <strong>de</strong> outrora. Agora as<br />

200

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!