Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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ter pregado <strong>um</strong>a partida cruel: da guerra ao massacre, da purificação <strong>é</strong>tnica à pobreza, tudo<br />
aconteceu. Mas aconteceu em todos os países “socialistas”? Não. As al<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Ast<strong>é</strong>rix on<strong>de</strong> a<br />
cruelda<strong>de</strong> não se verificou (a Polónia, a Hungria, a República Checa) parecem pertencer a <strong>um</strong><br />
mundo bem diferente do dos países Balcânicos ou da ex-União Sovi<strong>é</strong>tica (1). O que isto quer<br />
dizer <strong>é</strong> que o “regime socialista” não foi tão <strong>de</strong>terminante assim para aqueles países. De certo<br />
modo, os que se safaram sempre estiveram na órbita histórica e económica do capitalismo<br />
mundial. Quanto aos outros, não se safaram porque já eram à partida per<strong>de</strong>dores nesse regime<br />
global. A História não acabou com o fim dos dois blocos político-militares. Apenas se<br />
reajustaram velhas fronteiras. Apenas se regressou à or<strong>de</strong>m. Isto <strong>é</strong>: à <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sempre.<br />
Quem quis ver na queda do muro o sinal d<strong>um</strong>a nova or<strong>de</strong>m mundial, enganou-se redondamente,<br />
como o atestam as Bósnias <strong>de</strong>ste mundo.<br />
Ao mesmo tempo que se proclamava o regresso à “or<strong>de</strong>m natural das coisas” e à paragem da<br />
História n<strong>um</strong> mundo sem i<strong>de</strong>ologias e sem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar o futuro para lá da “lógica do<br />
mercado”, surgiu <strong>um</strong>a nova utopia. Esta já não podia basear-se na transformação da socieda<strong>de</strong><br />
por baixo, pela “infraestrutura”. Agora tinha <strong>de</strong> ser <strong>um</strong>a transformação “por cima”. A Internet e<br />
o ciberespaço forneceram o combustível i<strong>de</strong>al para esta fogueira das vonta<strong>de</strong>s. Em primeiro<br />
lugar, porque se tratava <strong>de</strong> “Informação” e não <strong>de</strong> Economia ou Política no sentido estrito. Em<br />
segundo lugar, porque se tratava <strong>de</strong> <strong>um</strong>a superação da civilização capitalista por ela própria –<br />
pela informação como valor, pela tecnologia e pelo cons<strong>um</strong>o individual. Em terceiro lugar,<br />
porque tinha qualquer coisa <strong>de</strong> et<strong>é</strong>reo e espiritual: bytes, i<strong>de</strong>ias e informação. Cedo se criou a<br />
utopia <strong>de</strong> <strong>um</strong> ciber-mundo saudavelmente anárquico, livre, sem censura, sem fronteiras, sem<br />
Estados.<br />
Peço <strong>de</strong>sculpa, mas há boas razões para ser <strong>de</strong>smancha-prazeres. Comecemos por baixo. Um:<br />
para ace<strong>de</strong>r à re<strong>de</strong> <strong>é</strong> preciso ter computador. Um computador ainda custa para cima <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
centena <strong>de</strong> contos. Uma centena <strong>de</strong> contos <strong>é</strong> <strong>um</strong>a quantia que a maior parte da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> não<br />
ac<strong>um</strong>ula n<strong>um</strong> ano <strong>de</strong> trabalho. Dois: os computadores são pensados por pessoas-empresas <strong>de</strong><br />
países que possuem o capital <strong>de</strong> conhecimento, mas são fisicamente feitos em países <strong>de</strong> mão <strong>de</strong><br />
obra barata, explorada, e alienada nas linhas <strong>de</strong> montagem. Três: se bem que a “anarquia livre”<br />
da re<strong>de</strong> seja engraçada, o que ela tem permitido <strong>é</strong> a ac<strong>um</strong>ulação <strong>de</strong> informação-lixo, com<strong>é</strong>rcio,<br />
pobreza est<strong>é</strong>tica e discursiva. A MacDonaldização dos <strong>é</strong>crãs. Com a <strong>de</strong>svantagem da lentidão e<br />
da perda <strong>de</strong> tempo.<br />
Estou a ser <strong>de</strong>masiado “conservador <strong>de</strong> esquerda”? Não creio. A “queda do muro” não instaurou<br />
<strong>um</strong> regime <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, paz e segurança; apenas veio mostrar as teias complexas em que as<br />
socieda<strong>de</strong>s “socialistas” já estavam embrenhadas. Quanto à utopia da re<strong>de</strong>, só <strong>é</strong> partilhada pelos<br />
privilegiados: os que sabem ler, os que sabem mexer n<strong>um</strong> computador, os que têm computador.<br />
A ciber-burguesia quer transformar o mundo como a burguesia mercantil quis acabar com a<br />
Ida<strong>de</strong> M<strong>é</strong>dia. Ao fazê-lo, esquece-se que o número <strong>de</strong> ciber-excluídos <strong>é</strong> infinitamente maior. E<br />
que, tal como os direitos <strong>de</strong> cidadania burgueses e o capital não se disseminaram por toda a<br />
gente, os direitos à informação não se estão a disseminar por toda a gente. Pela simples razão <strong>de</strong><br />
que a informação <strong>é</strong> <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> capital.<br />
(1)Quando comunico com os meus colegas <strong>de</strong> leste, uso o e.mail para a Polónia, Hungria e<br />
República Checa. Para a Rom<strong>é</strong>nia, por exemplo, tem <strong>de</strong> ser “snail mail” (correio-caracol, isto <strong>é</strong>,<br />
correio normal).<br />
Vestir o Cristo<br />
(Público, 19.05.96)<br />
Lisboa tem das mais feias estátuas em locais públicos. Questão <strong>de</strong> gosto? Sim. Os gostos são<br />
para se discutir. Todas as discussões são discussões <strong>de</strong> gosto – e dos sentidos nele implícitos. O<br />
Marquês <strong>de</strong> Pombal <strong>é</strong> feio e complicado. O Saldanha <strong>é</strong> <strong>um</strong> homenzinho ridículo a tentar<br />
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