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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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com toda a razão, que a casa não era do funcionário, lembrando-o do que significa pagar<br />

impostos. O funcionário aceitou o arg<strong>um</strong>ento, mas quando recebeu os pap<strong>é</strong>is dos candidatos<br />

imediatamente os recusou. Qual a razão invocada? Não falavam português.<br />

N<strong>um</strong> <strong>de</strong>bate na SIC na noite anterior, foram <strong>de</strong>nunciados casos <strong>de</strong> guineenses ex-militares das<br />

forças armadas portuguesas, cuja situação legal em Portugal nem por isso se encontrava<br />

resolvida. Mais: <strong>um</strong> advogado ligado a estas questões dizia que os romenos e os não falantes <strong>de</strong><br />

português em geral encontravam maiores problemas no seu processo <strong>de</strong> legalização do que as<br />

pessoas oriundas dos Palop. Os dois casos revelam as contradições <strong>de</strong> todo este processo.<br />

O processo <strong>de</strong> legalização não <strong>é</strong> mais do que isso mesmo: legalização. Não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

processo <strong>de</strong> naturalização ou <strong>de</strong> obtenção da nacionalida<strong>de</strong> portuguesa. No entanto, este crit<strong>é</strong>rio<br />

da língua está a ser usado como <strong>de</strong>terminante – pelo menos ao nível do senso com<strong>um</strong> <strong>de</strong> alguns<br />

funcionários – para a elegibilida<strong>de</strong> dos candidatos. Ora, mesmo se se tratasse <strong>de</strong> <strong>um</strong> processo <strong>de</strong><br />

obtenção da nacionalida<strong>de</strong>, a língua não <strong>de</strong>via ser relevante. Por <strong>de</strong>trás da obsessão com a<br />

língua, está <strong>um</strong>a visão essencialista do “ser português”.<br />

Acontece que o que está aqui em causa não <strong>é</strong> pessoas que querem ser portuguesas. Trata-se <strong>de</strong><br />

pessoas que querem ver legalizada a sua situação para obterem direitos (e <strong>de</strong>veres) que são<br />

contrapartida dos serviços que prestam à socieda<strong>de</strong> portuguesa com o seu trabalho. Entre esses<br />

direitos e <strong>de</strong>veres está o usufruto <strong>de</strong> educação e segurança social, o pagamento <strong>de</strong> impostos, a<br />

aprendizagem da língua enquanto instr<strong>um</strong>ento <strong>de</strong> vida na comunida<strong>de</strong>, entre outros.<br />

É altura <strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r instituído nos esclarecer sobre o que quer para o país, isto <strong>é</strong>, se quer mesmo<br />

<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> plural, multi<strong>é</strong>tnica, não racista – como indica a sua retórica – ou se quer <strong>um</strong>a<br />

“nação” etnicamente “pura” que recebe caritativamente <strong>um</strong>a mão-cheia <strong>de</strong> trabalhadoresvisitantes,<br />

para usar a elucidativa expressão alemã. No meu ponto <strong>de</strong> vista, que <strong>é</strong> o da<br />

radicalização da <strong>de</strong>mocracia, as pessoas agora legalizadas <strong>de</strong>veriam usufruir <strong>de</strong> ainda mais<br />

direitos <strong>de</strong> cidadania, entre eles o direito <strong>de</strong> voto. Isto porque a noção <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> (isto <strong>é</strong>, e<br />

neste caso, Portugal) não po<strong>de</strong> continuar a ser <strong>de</strong>finida por fantasias <strong>é</strong>tnico-linguísticas, mas sim<br />

pelo conjunto das pessoas que aqui habitam e trabalham (ou não trabalham, mas por<br />

circunstâncias alheias à sua vonta<strong>de</strong>). Esta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> inclui a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver<br />

grupos que nem sequer falem – ou não queiram falar – a língua oficial. Mas a quem sejam dadas<br />

as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> a apren<strong>de</strong>rem, já que ela <strong>é</strong> <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento <strong>de</strong> comunicação e, logo, <strong>de</strong><br />

exercício da cidadania.<br />

O pensamento baseado na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> nação e <strong>de</strong> etnia usa a língua como crit<strong>é</strong>rio <strong>de</strong>finidor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

especificida<strong>de</strong> inimitável. Como não <strong>é</strong> assim, esforça-se loucamente por adaptar a realida<strong>de</strong> à<br />

fantasia, ao ponto <strong>de</strong> contradizer os seus próprios princípios exclusivistas. É o que acontece, por<br />

exemplo, quando o racismo que <strong>de</strong>fine os portugueses como “brancos” (iludindo todas as nossas<br />

misturas históricas) <strong>é</strong> suspenso para dar primazia ao crit<strong>é</strong>rio da língua, privilegiando as pessoas<br />

dos Palops em <strong>de</strong>trimento, por exemplo, dos romenos. N<strong>um</strong>a outra situação as coisas inverterse-iam<br />

facilmente, dando primazia à “raça” e esquecendo a língua. São estas cambalhotas que<br />

provam como a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> nação <strong>é</strong> <strong>um</strong>a logro da or<strong>de</strong>m do <strong>de</strong>sejo, semelhante à obsessão<br />

classificatória dos coleccionadores <strong>de</strong> borboletas (salvos sejam).<br />

Legalizam-se os imigrantes, mas usam-se os crit<strong>é</strong>rios da naturalização, a qual, por sua vez, <strong>é</strong><br />

tornada difícil <strong>de</strong> alcançar. O que fica <strong>de</strong> fora <strong>é</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> cidadania e <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>. Uma<br />

comunida<strong>de</strong> <strong>é</strong> sempre transitória e os seus cidadãos <strong>de</strong>vem ser os que nela vivem<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da origem e po<strong>de</strong>ndo ter projectos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (<strong>é</strong>tnica e outras) múltiplos.<br />

A única coisa que se pe<strong>de</strong> <strong>é</strong> que respeitem o preceito legal mínimo <strong>de</strong> não serem criminosos.<br />

Mas estes, ao que consta, há-os mais entre os “portugueses <strong>de</strong> gema”.<br />

No Meio<br />

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