Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
“Matutazos”<br />
(Público, 26.05.96)<br />
Convido-vos a ler o seguinte texto atentamente. É a transcrição fiel – erros e tudo – <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
folheto distribuido aos milhares nas ruas <strong>de</strong> Lisboa. O texto <strong>de</strong>screve <strong>um</strong> dia n<strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes com se<strong>de</strong> em Espanha e <strong>de</strong>legação no Porto.<br />
“6,30 horas: Alguns rapaces se levantan, uns preparan o pequeno almoço e outros ainda estâo a<br />
passean com rapaces novos que ainda nâo dormen. O resto dormen. 7,00 horas: Todo o mundo a<br />
cima !!Bons días!!, !!Animo campeons!!, frases como estas se escutâo por toda a casa. Os<br />
rapaces se areâo, fazen as suas camas e baixâo para tomar o pequen o almorço. 7, 30 Horas: Se<br />
limpâo as mesas e se fás <strong>um</strong> circulo redondo com as co<strong>de</strong>iras. Logo alguem pega n<strong>um</strong>a guitarra<br />
e comesa a tocar albanzas, uns cantaâo, outros escutâo e outros olhâo <strong>um</strong> pouco espantados.<br />
Cust<strong>um</strong>a ser <strong>um</strong> momento muito especial. Despois lalguem pega n<strong>um</strong>a biblia lê alg<strong>um</strong>a coisa<br />
que se compare com a vida do día a día. Se intenta apren<strong>de</strong>r alg<strong>um</strong>a coisa nova para esse día.<br />
8,30 horas: Se aco<strong>de</strong> a os diferentes sitios <strong>de</strong> trabalho a o rastro, â sucata usada e outros<br />
transpoirtâo moveis e eletrodom<strong>é</strong>sticos, que nos dâo as pessoas e outros vâo âs oficinas<br />
ocupacionais, carpintaría, mecânica, chapa y frigoríficos. Os que ficâo em casa, limpâo a roupa,<br />
fazen a comida o máis importante: Cuidam os rapazes novos que ainda teêm resaca, e que<br />
necesitam passeos e masogens. Animo e todo o que porras dar-lhes.<br />
13,30 horas: Paramos dúas horas para comer e <strong>de</strong>scansar <strong>um</strong> pouco. 15,30 horas: Se continúa<br />
com o trabalho at<strong>é</strong> ás 19:30. 19:30: Depen<strong>de</strong>ndo dos días, há reonionês, ou entâo os rapazes vâo<br />
para as suas respectivas casas e teêm tempo para or<strong>de</strong>nar a sua roupa, por as coisas em or<strong>de</strong>m,<br />
escrever â familia, falar, as vezes jogam <strong>um</strong>a partida <strong>de</strong> futebol. 21:30 horas: Hâ que yantar e<br />
<strong>de</strong>itar-se cedo. Foi <strong>um</strong> día duro, antes <strong>de</strong> dormir alguns aproveitan para bêr. Outros teêm que<br />
seguir passeando com os rapazes novos. posivelmente, atê muito tar<strong>de</strong>. Eles nâo teêm horario e<br />
hâ que cuidar-los, temos que fazer o posivel para que tirem para diante. Un día tambem o<br />
fizerâo por nós. Graços a Deus por as perssoas que cada día se entregan ao 100% para que<br />
rapazes <strong>de</strong>struidos por as drogas tenham <strong>um</strong> a esperansa e posam sair como vencedores.”<br />
Devo ser dos poucos portugueses que gostam <strong>de</strong> Espanha. Mas não gosto <strong>de</strong>sta Espanha. <strong>Este</strong><br />
texto – para lá do aspecto h<strong>um</strong>orístico – <strong>é</strong> passível <strong>de</strong> vários tipos <strong>de</strong> análise. A primeira tem<br />
que ver com a língua. Não se trata nem <strong>de</strong> português, nem <strong>de</strong> castelhano, nem sequer <strong>de</strong> galego,<br />
leonês ou asturiano. Nem sequer mirandês. É <strong>um</strong>a fantasia <strong>de</strong>liciosa. Podíamos chamar-lhe<br />
“matutazo”. Ao contrário <strong>de</strong> idiomas híbridos gerados pela crioulização, aqui o que temos <strong>é</strong> <strong>um</strong><br />
híbrido feito na cabeça <strong>de</strong> <strong>um</strong> indivíduo. O qual, diga-se <strong>de</strong> passagem, mesmo que escrevesse<br />
n<strong>um</strong>a língua padrão seria pouco competente, já que há erros tamb<strong>é</strong>m <strong>de</strong> sintaxe, aplicáveis por<br />
igual ao português e ao castelhano.<br />
Em segundo lugar, isto revela a forma tosca como a integração luso-espanhola está a ser feita. É<br />
que ela está a ser feita: <strong>é</strong> <strong>um</strong> facto. Graças à União Europeia, à força económica espanhola e à<br />
realida<strong>de</strong> histórica <strong>de</strong> os dois países partilharem o mesmo espaço por muito que não o queiram<br />
reconhecer. Só que, como <strong>é</strong> a economia o cavalo que puxa a carroça, a cultura fica para trás e<br />
po<strong>de</strong>m surgir “línguas” como esta, ou os exemplos semelhantes que encontramos nos rótulos<br />
dos produtos <strong>de</strong> supermercado.<br />
Por fim, a oferta <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> toxico<strong>de</strong>pendência faz parte <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong><br />
penetração económica, lado a lado com o pão industrial, as batatas <strong>de</strong> pacote, os “matutazos” ou<br />
o capital nas empresas privatizadas. Quanto ao conteúdo do “día a día” com acento agudo<br />
<strong>de</strong>scrito no texto, <strong>de</strong>ixo ao leitor a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise. Viva a economia <strong>de</strong> mercado! Viva a<br />
cultura <strong>de</strong> mercado!<br />
P.S.: Como <strong>é</strong> possível não ter escrito hoje sobre o caso do GNR que quis extorquir <strong>um</strong>a<br />
confissão a <strong>um</strong> cidadão (“toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”, claro!) e que o assassinou, <strong>de</strong>capitou e ainda<br />
28